Rui Martins, activista e dirigente associativo, fundador do colectivo Vizinhos do Areeiro, esteve de visita à capital francesa, mas não esqueceu a sua cidade. Uma viagem e um texto (sempre) com Lisboa no horizonte.
Recentemente tive oportunidade de realizar uma breve visita a Paris. A viagem em si não seria merecedora de notícia, mas, devido a uma espécie de “desvio” do meu carácter, sempre que vou a uma cidade estrangeira enquanto os outros se ocupam (e bem) a fotografar monumentos e paisagens, eu entretenho-me a observar o espaço urbano e a estabelecer comparações e a recolher ideias sobre o como se poderia melhorar a nossa cidade.
Nesta crónica não pretendo fazer um levantamento exaustivo das diferenças entre Lisboa e Paris — nem entrar naquele caminho (muito português) do “lá fora é que é bom”, nem no oposto “nós é que fazemos bem” — mas sim empreender um exercício comparado sobre breves aspectos das duas cidades.
Inflação e Preços
Os preços dos supermercados e restaurantes, e isto apesar de ser uma das cidades mais turísticas do mundo e deste sector ser um dos principais na economia de Paris, responsável por mais de 18% do emprego, não parecem muito diferentes dos de Lisboa. Uma refeição num restaurante para três adultos ronda os 60 euros — cerca de mais de 20% do que na capital portuguesa. Embora os artigos de supermercado sejam mais caros (entre 30 a 40%) a verdade é que sobre isto temos que aplicar o salário médio francês e, acima deste, o de Paris que, com os seus 2750 mensais, é 9,8% superior à média francesa e muito superior à média salarial de Lisboa — 1171,9 euros, se bem que 17,7% dos trabalhadores recebam menos de 600 euros e 29,2% entre 600 e 900.
É claro que os franceses suportam, tal como como nós, valores exagerados no acesso à habitação: um estúdio de 24 m2 pode custar 820 euros por mês e um T2 de 37.5 m2 cerca de 1180 euros mensais, mas, como nos restaurantes e supermercados, há que considerar o valor do salários num quadro da habitação que é praticamente idêntico. Em alguns casos, em Lisboa é mesmo superior, com um T1 na avenida Columbano Bordalo Pinheiro a poder custar 700 euros por mês; ou um ‘mirabolante’ T2, na rua de Santo António da Glória, disponível por 2.680 euros (as duas casas mais baratas no site Idealista a 12.01.2023).
Os preços dos livros pareceu-me idêntico: um álbum de banda desenhada Thorgal (“Tupilaks”) por 12.95 euros, em Paris, contra o mesmo na Wook, disponível por 12,36 euros. Na Informática a gama de preços também era idêntica. Na FNAC de Orly um MacBook Air M1 vendia-se a 1199 euros vs o mesmo modelo da Worten do Vasco da Gama por 1069 euros. Novamente o mesmo fenómeno: preços semelhantes, mas num contexto de rendimentos muito diferente.
População
Paris é a cidade mais populosa de França, com mais de 2,1 milhões de habitantes. Comparando com Lisboa estamos noutra escala. A nossa capital tem perdido população praticamente todos os anos, tendo hoje cerca de 541 mil habitantes (em 2001 eram 564 mil).
A loucura da escalada dos preços da habitação, a inflação e o desalinhamento com os salários vai repelir ainda mais lisboetas da cidade nos próximos tempos e as tímidas iniciativas públicas dos últimos anos não são suficientes para fazer a diferença. É certo que Paris também é uma das cidades mais caras do mundo para viver e que a sua população caiu entre 1954 e 1999, mas, desde então, recuperou habitantes, mantendo-se agora entre 2.2 e os 2.1 milhões.
Bicicletas e Trotinetes
A primeira surpresa ao percorrer as ruas de Paris foi não ter encontrado nenhuma (zero!) trotinetes partilhadas abandonadas sobre os passeios da cidade. Bicicletas partilhadas (curiosamente, da rede da cidade) existiam algumas, mas trotinetes nem uma. Todas se encontravam nos lugares especialmente designados para o efeito. Talvez por essa razão também tenha encontrado muito poucos parisienses deslocando-se nessa forma de mobilidade leve. Ciclistas, pelo contrário, encontrei bastantes, quase todos de capacete e de todas as idades (contrariando o mito luso). Todos em ciclovias ou partilhando as estradas com os automobilistas e nenhum disputando o passeio com os peões.
Também não vi sinais de agressividade nas novas formas de mobilidade (em Lisboa é comum ver carros colados a bicicletas ou ciclistas em condução veloz sobre o passeio). Como curiosidade, registo para as empresas de entregas que usam bicicletas com caixas volumosas.
Paris, como Lisboa, tem uma densa rede de bicicletas públicas partilhadas. Em Lisboa, a rede GIRA agrega 130 estações com 2500 docas e, aproximadamente, 1600 bicicletas, sendo que a maior parte são eléctricas. Em Paris, a rede Vélib tem mais de 20 mil bicicletas (a sua população é seis vezes maior que a de Lisboa). Ou seja, uma bicicleta para cada 105 habitantes, enquanto que Lisboa tem apenas uma para 338 lisboetas. A oferta parisiense é muito superior à lisboeta o que demonstra a intensidade da aposta na mobilidade verde por parte do executivo parisiense.
Passando por várias destas estações foi também possível constatar que não faltavam bicicletas e a visão comum em Lisboa de “Glovos” e “Ubers” usando estas bicicletas públicas não tem correspondência em Paris.
Ressalte-se ainda que, em Paris, é possível carregar o cartão destas bicicletas através de unidades “multibanco” presentes em todas as estações Vélib. Registe-se, contudo, que tanto a cidade francesa como Lisboa optaram por instalar estas estações em lugares de estacionamento automóvel, havendo, ainda assim, algumas em parques públicos e passeios — como, de resto, sucede também em Portugal.
As ciclovias de Paris
Junto ao Sena encontrei várias ciclovias bidireccionais: em muitas ruas de sentido único, uma interessante marcação no piso permite a circulação de bicicletas em direcção oposta à do tráfego automóvel. Toda esta rede foi construída pela presidente da autarquia francesa durante a pandemia e enquadrou-se na resposta da cidade à crise sanitária através da transformação de 50 quilómetros de antigas vias de trânsito tradicionais em “ciclovias pop-up”. Ou as “coronapistas”, como são conhecidas.
A intenção era retirar pressão sobre os transportes públicos e aumentar a segurança sanitária dos parisienses. Posteriormente, Anne Hidalgo viria a propor a retirada de metade dos automóveis da cidade, criando parques de estacionamento à entrada da cidade e a transformação dos Champs-Élysées, num jardim através da remoção do tráfego automóvel. Este projecto vai custar 250 milhões de euros e está previsto arrancar depois dos Jogos Olímpicos de 2024, numa intervenção que visa reduzir o tráfego e criar uma grande área verde. O projecto decorre de uma iniciativa que arrancou em 2018 e envolveu a participação popular através de inquéritos e debates que mostraram que os cidadãos preferiam uma renovação capaz de reduzir o número de veículos, a poluição e que aumentasse os espaços verdes na avenida em torno do Arco do Triunfo.
A transformação de vias automóveis efectuada, por exemplo na Rue de Rivoli (desde o Louvre à Praça da Bastilha), foi idêntica ao que aconteceu em Lisboa na Avenida Almirante Reis, já as praças da Bastilha, da Madalena e da Nação foram requalificadas tendo em conta as necessidades dos peões. Prevista está também a plantação de árvores neste e noutros eixos viários e foi (como em Lisboa), alvo de contestação popular que, entretanto, amainou.
Pequenos (e micro) Espaços Verdes
Muitas zonas expectantes de Paris foram transformadas em espaços verdes e encontramos algumas caldeiras de árvore entregues aos cuidados de moradores no decurso do projecto parisiense “le permis de végétaliser”. Assim se aumentou a quantidade de espaços verdes e criaram laços com a sua população com o convite a que moradores plantam, cuidam e reguem os seus espaços.
Por contraste, numa caldeira que tentei “vegetalizar” perto de minha casa, tal como numa iniciativa idêntica de uma moradora noutra avenida, tivemos que lidar com a oposição activa dos serviços de higiene urbana que começaram por desmantelar a instalação de plantas nas caldeiras para, por fim, as tolerar.
Era certo que isto era feito sem o apoio directo, aval ou protocolo da Junta de Freguesia, mas em Lisboa esse modelo não existe. A cidade, a este respeito bem que poderia seguir o exemplo de Paris, porque protocolar este cuidado com moradores seria a forma correcta de conduzir este tipo de processos participativos e garantir o empenhamento e compromisso por parte dos cidadãos e o apoio ou tolerância dos responsáveis autárquicos.
Sublinho igualmente a presença de, em várias ruas (tornadas pedonais por Anne Hildalgo), de pequenos espaços verdes com lascas de madeira — para proteger da evaporação e para evitar a presença de relva — com vegetação intencionalmente desordenada, o que contrasta com os tristes exemplos da Avenida Almirante Reis.
Destaco ainda a “rua végétale”, em que todas as ilhas centrais foram transformadas em jardins “caóticos” (miniflorestas) e a regra da presença de protecções metálicas em torno do tronco da árvores de Paris assim como as protecções especiais colocadas nos troncos das árvores quando o logradouro se encontra em obras. Merece também especial atenção (e seguimento em Lisboa) as grandes caldeiras que circundam a maioria das árvores de Paris e que, ademais, estão cercadas de cerca de um metro em empedrado, para facilitar o acesso pedonal e permitir a admissão de águas pluviais à caldeira.
Existe, claramente, uma grande aposta em formas de mobilidade leve na cidade de Paris, como já existiu em Lisboa — apesar do esmorecimento desse esforço nos últimos tempos. É notório que o sistema eleitoral muito específico de Paris (com eleições autárquicas em duas voltas), desempenha o seu papel, ao permitir que medidas menos populares – no curto prazo – no que respeita a iniciativas de mobilidade, possa não levar a derrotas eleitorais através da polarização de votos na segunda volta.
Caminhando pelas zonas centrais da cidade há, sem dúvida, uma diferença em relação a Lisboa: as ruas estão mais libertas de carros, a densidade de peões é elevada, encontramos mais ruas reservadas a peões com pequenos espaços verdes do que em Lisboa, no mesmo tipo de zonas centrais e visitadas que em Lisboa. Paris está a fazer a sua transição verde. Daqui a alguns anos saberemos se Lisboa também faz a sua parte ou não.
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