“Se trouxermos aqui um turista ele percebe de imediato que estamos num bairro municipal”, diz Margarida Marques, co-fundadora da Rés do Chão, associação que tem nos bairros Marquês de Abrantes, Salgadas e Alfinetes (Marvila) a sua sede e grande área de intervenção. Usam a arquitectura, o urbanismo e os processos participativos para mudar o paradigma.
Não é preciso ser-se turista nem perceber muito de arquitectura ou urbanismo para concluir que a qualidade do espaço público desta zona de Marvila fica aquém de outros bairros lisboetas. Basta caminhar um pouco. Levantar a cabeça. “Aconteceu há alguns meses uma destas ruas ficar sem luz durante semanas”, revela Margarida, enquanto dá a conhecer algumas das intervenções na qual a sua associação tem participado e impulsionado. “Perguntei à vereadora se o mesmo seria possível nas Avenidas Novas e ela admitiu que não. É claro que não”.
Quando as entidades responsáveis se demitem de fazer o seu trabalho, resta aos cidadãos meter mãos à obra. “A praceta A é varrida pelos os moradores”, aponta a arquitecta. “Estes canteiros são tratados pelos moradores. A manutenção, de uma forma geral, depende dos moradores”. Volta a recorrer ao exemplo das Avenidas Novas, onde “não haverá ninguém” que seja obrigado a limpar o espaço à volta de casa ou a regar as plantas, pois elas “aparecem regadas”. Dá ainda o exemplo dos espaços expectantes — termo técnico para se designar um local à espera de melhores dias ou de intervenção. “Quase não há espaços expectantes na cidade. Existe em Entrecampos, onde ficava a antiga Feira Popular, mas até a forma como são tratados é diferente. Aí é utilizado pelas marcas para fazer publicidade, aqui para… pastar o rebanho”.
A referência não surge ao acaso. O seu raciocínio é interrompido pelo balido de dezenas de ovelhas que, ao final da tarde, chegam para reclamar o pasto deste descampado, naquela que se já se tornou uma imagem de marca do bairro. Um postal castiço e inusitado, perfeito para passar a imagem de uma Lisboa cosmopolita capaz de manter os pés assentes na terra, mas também uma espécie de radiografia às assimetrias da cidade.
Nada disto tem, contudo, que ser um fado. Uma inevitabilidade. Margarida conta que, a certa altura, começaram a perceber a vontade dos moradores “de que ali nascesse um parque urbano”, até que “a Cristina, da praceta A, se chegou à frente” e disse que queria fazer uma proposta de orçamento participativo. “Perguntou-nos se ajudávamos, dissemos que sim, se fosse algo colectivo, e ajudámos com tudo”. A comunidade mobilizou-se, as associações locais e a Junta de Freguesia também, e o projecto avançou. A proposta não chegou a ir a votos, ainda assim, Fernando Medina assumiu o compromisso de avançar com a construção.
A mudança de executivo gerou alguma apreensão, mas a obra deverá mesmo arrancar, estando o concurso público previsto para este ano. Um projecto ganho pelo atelier de arquitectura paisagística (PROAP), responsável por várias intervenções na frente ribeirinha, e que teve um forte impacto na comunidade, revela Margarida. “Quando foi apresentado aos moradores percebeu-se como eles ficaram emocionados. Todos nós sabemos o que é um espaço público de qualidade e o que não é. Ser arquitecto permite ter ferramentas para desenhá-lo, mas quem lá vive percebe onde se sente confortável ou não”.
É este o objectivo de Margarida e da Rés do Chão, desenvolver projetos de regeneração urbana e de qualificação de espaços públicos e comunitários, através de processos de participação. Desenhar e criar uma cidade mais inclusiva, democrática e sustentável, em que os moradores tenham um papel activo. Uma ideia que se materializou em 2014.
Eram, à data, quatro elementos, todos em part-time. Em 2017, tomaram a decisão de trabalhar em contextos de bairro municipal, “onde seria mais fácil trabalhar com o proprietário”, que, por norma, é a Câmara, mas já “a pensar na questão do espaço público e uma abordagem a uma metodologia participativa”. No final desse ano, Margarida despediu-se dos outros trabalhos e ficou na associação a tempo inteiro. Actualmente são cinco, sediados em Marvila, apesar de não limitarem a sua área de intervenção a esta zona da cidade.
Margarida faz, por isso, questão de afirmar que não são uma associação local. Mas trabalham de mãos dadas com elas, desde logo no projecto Sê Bairrista, que, desde 2020, realizou mais de 135 actividades e cinco intervenções nos bairros Marquês de Abrantes, Salgadas e Alfinetes, entre eles a reconfiguração e qualificação de pracetas, criação de um parque infantil ou transformação de descampados em jardins comunitários. A isto juntou-se a organização de dois festivais. Tudo a bem do sentimento de pertença. “Muitas vezes é pedido a pessoas realojadas que cuidem, que não estraguem, a verdade é que não há um sentimento de pertença. Eu só consigo estar feliz com as minhas calças se gostar minimamente delas. É a mesma coisa com a minha casa e o meu bairro”, conclui.
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