Ilustração: Adão Conde
A vida numa cidade é feita de um tecido heterogéneo de experiências. De obrigações profissionais ou académicas e de uma existência pessoal. De rotinas, deveres e burocracias, mas também de prazeres. De pequenas e grandes coisas. De encontros e desencontros. Uns memoráveis, outros nem tanto. A observação clínica da banalidade do quotidiano, mesmo que domingueiro, pode bem servir para nos revelar um certo absurdo dessa vivência. Foi o que fez o leitor Carlos Reis nesta crónica, ilustrada por Adão Conde.
Munido de dois empregados de mesa, sendo que um era simpático, sorridente e afável e o outro potencialmente áspero e antipático, logo haveria de me calhar o segundo, o qual assim que entrei, solitário, me despachou imediatamente e em voz de comando, para uma mesa esconsa e funda, desprovida de luz e de paisagem.
No minuto seguinte, o restaurante, que estava vazio e transparente quando o inaugurei, encheu-se de terceiras idades de ambos os sexos, com um predomínio geral autoritário e administrativo do sexo feminino, que comandava com soberania e competência a invasão e a ocupação das mesas.
Perto de mim, uma dessas forças vivas ralhava com o taciturno, silencioso e desistente esposo, propondo-lhe comportamentos e repreendendo-o com autoridade – tira os óculos, para que é que precisas deles agora, chega-te para a frente, endireita a cabeça, não te encostes à cadeira do senhor – depois de ter decidido discricionária e soberanamente sobre a ementa de ambos.
Reparei numa outra mesa com três idades, um casal de pais, avós e sogros em simultâneo e o marido e também genro que se marimbava para a jovem esposa, sentando-se longe dela, tão jovem e já tão triste, ela, que tinha simultaneamente de atentar nos perigosos comportamentos do miúdo de ambos (dar-lhe de comer, sozinha ou com uma ajuda vaga da mãe-avó) e manter alguma conversação circunstancial. Miúdo esse que, além do mais, falava alto que se fartava, excitado que estava, assim no meio de um restaurante de crescidos, procurando, com uma infantil e honesta busca de atenção de que andaria com certeza arredado ao longo da semana, chamar essa mesma atenção para a sua recente existência.
Reparei também, e já um pouco tarde de mais, na posta de peixe-espada que entretanto encomendara – discreta, timidamente descongelada e cuja textura e consistência amolecida se coadunava, harmoniosa, com uma espécie de feijão esverdeado, no pequeno mar interior que constituía a bandeja em que ambos navegavam.
Bebi café, não dei gorjeta, levantei-me e penetrei no frio.
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