Crónica

Rui Martins

A Porta e o Frontão Arte Nova do Nº 20 da Rua Carvalho Araújo

7 de Outubro, 2022

Ao caminhar pela cidade, deparamo-nos muitas vezes com edifícios antigos que, não sendo extraordinários, chamam a atenção por um pormenor. Concedendo-lhes um pouco de tempo para conhecermos a sua história, apercebemo-nos que são, afinal, como os anónimos com quem nos cruzamos todos os dias: têm uma biografia. É o caso deste prédio numa rua situada entre a Morais Soares e a Alameda. O leitor Rui Martins evoca-o, olhando também para os primeiros anos da sua vida. Uma questão de memória e de identidade.

A 19 de setembro de 1966, nascia no número 20 da Rua Carvalho Araújo, Penha de França, este vosso cronista. Mais concretamente, no 1º Esquerdo. Ou seria no 1º Direito?… Lá em casa, ninguém se lembra muito bem… O curioso, mesmo, é que este prédio seja o único que conheço em Lisboa com o tipo de entrada em Arte Nova que as fotografias ilustram. Aqui, nesta casa, os meus pais, recentemente vindos do Alentejo, tinham um quarto alugado num piso de um dito “prédio de rendimento”, onde aplicavam mais de metade do salário de 600 escudos do meu pai enquanto funcionário do Metropolitano de Lisboa.

Actualmente, vivo na vizinha freguesia do Areeiro e é algo premonitório que o nome original deste arruamento tenha sido precisamente “Azinhaga do Areeiro”, tendo perdido esse nome apenas em 1924 e dentro do território da Quinta das Ameias (ou Casal Vistoso): coincidências dos primórdios de vida deste alfacinha de gema.

O prédio do nº 20 pertence a um género muito comum na Avenida Almirante Reis e nas ruas em redor: o dos “prédios de rendimento”. Eram edifícios construídos de raiz, em grande número na primeira metade do século XX, mas que tiveram a sua origem a partir da segunda metade do século XVIII, sendo descritos num estudo da edição de 2018 do “Prémio André Jourdan” como imóveis “essencialmente de habitação, mas podendo incluir comércio e serviços, composto por múltiplas frações independentes”. E que eram, até “ao advento da primeira regulação do regime de propriedade horizontal, em meados de 1950, de promoção privada”.

Em 1966, o prédio ainda era essencialmente de arrendamento, sendo a casa do quarto onde vivia, e onde vivi por um ano, por sua vez, também arrendada. Como curiosidade, registe-se algo que era habitual nestes prédios nesta época, que era a presença de uma casa de banho única por piso, onde se acedia a partir de um passadiço metálico que dava para um pátio interior e que seria posteriormente demolido.

No mesmo ano de 1966, esta Rua Carvalho Araújo era fotografada, curiosamente apenas três meses antes do meu nascimento por Arnaldo Madureira – (A “RUA CARVALHO ARAÚJO” esquina com a “RUA JOSÉ RICARDO”, no sentido Sul), como se vê no Arquivo Fotográfico do Arquivo Municipal de Lisboa. Infelizmente, a fotografia não cobre a interessante porta do nº 20, pelo que é impossível saber se a porta tinha algum elemento decorativo adicional tão original como o seu frontão.

Segundo o blog Ruas de Lisboa com Alguma História (aps-ruasdelisboacomhistria.blogspot.com), a rua homenageia o Comandante do “NRP Augusto de Castilho”, um pequeno navio patrulha, originalmente um arrastão de pesca construído em 1909 – adaptado e armado com uma peça de artilharia de 65 mm à vante e outra, de 47 mm, à ré -, que, em 1918, enfrentou a tiros de canhão e até ficar sem munições o submarino alemão “Kapitänleutnant Schweiger” ou U-139, comandado por Lothar von Arnauld de la Perière. O combate permitiu que o vapor “São Miguel” se afastasse, tendo ficado o comportamento heróico dos portugueses registado no diário de bordo do U Boat alemão.

O frontão do nº 20 da Carvalho Araújo é em Arte Nova, um estilo de influência francesa, que começou em finais do século XIX e se estendeu até à década de 1920, com alguns exemplos tardios da década seguinte. O frontão, entre motivos vegetais típicos do estilo, exibe ainda dois medalhões com os rostos de duas crianças do sexo feminino que olham uma para a outra e que, à semelhança da decoração do exterior do Palácio da Quinta da Regaleira, em Sintra, podem representar as netas do proprietário e investidor neste prédio ou serem, tão somente, um simples motivo decorativo esvaziado de significado especial.

Não conheço outro caso igual em Lisboa, de um frontão neste estilo e com estes motivos decorativos. O que, aliás, reforça a tese de se tratar, mesmo, de uma referência familiar directa. É também em Arte Nova a original placa toponímica em azulejos “Rva Carvalho Araújo Oficial da Armada Morto gloriosamente em combate”, com os seus motivos vegetalistas, devendo datar de 1924, ano em que esta rua perdeu a designação de “Azinhaga do Areeiro”.

É assim pena que, com tão original decoração, alguém, na década de 1980, tenha decidido substituir a porta de madeira por uma horrível porta de alumínio. A substituição foi uma das muitas que, desde então, ocorreu por Lisboa e que não parou, até hoje, de descaracterizar estes elegantes prédios de Entre-os-Séculos, com a impunidade que não devia estar associada a estes processos de alteração irregular de fachada.

Sem dúvida que se compreende a necessidade de modernizar, dando maior segurança e isolamento térmico aos vestíbulos, mas há limites e, havendo boa vontade, é possível reconstruir estas portas antigas, como o prova um exemplo recente na Rua Cândido Guerreiro, no Bairro do Arco do Cego, onde a porta da década de 1920 foi totalmente reconstruída em madeira nova, mas preservando totalmente o desenho original.

O Artéria é um projecto de jornalismo comunitário. É feito por voluntários, supervisionados por um jornalista profissional.

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