O consumo responsável ganha terreno em Lisboa pela mão das comunidades

21 de Dezembro, 2022

Reportagem

Sofia Craveiro
Contrariar o consumismo, desacelerar o quotidiano e aprender a desfrutar do tempo. Na capital, nascem hortas comunitárias, cooperativas de consumo e ações locais que procuram sensibilizar para a importância de preservar o ambiente. Atuando em diferentes áreas, os projetos têm em comum a vontade de promover a sustentabilidade e contrariar a cultura do descartável. Pelo meio, estreitam laços e criam novas comunidades.

Na horta do Alto da Eira, há de tudo um pouco: um pequeno bosque com 18 árvores, arbustos de frutos silvestres, um canto de plantas aromáticas, produtos hortícolas – como couve, cenouras, batata doce ou pimento – e outras coisas que estarão a brotar da terra desde o dia em que a visitámos. Também já houve milho e girassóis. Há algumas semanas, fez-se, de raiz, um forno comunitário artesanal. Em datas pontuais, já houve leitura de histórias, tai-chi e castanhas assadas.

O que não há nesta horta comunitária da Penha de França é espaço para o individualismo. Não existem áreas de cultivo divididas nem noções de posse. Tudo é de todos os que põem as mãos na terra. O local serve para cultivo e convívio. “É um projeto muito social, porque é um espaço onde as pessoas se encontram para cultivar e colher em conjunto e, por isso, acabam por se aproximar de outra forma”, diz Maria Freitas, responsável da Associação Regador, que deu vida a este projeto.

O coletivo nasceu para contrariar o ciclo de consumo desenfreado, abrandar o ritmo e “unir as pessoas”. Primeiro trabalharam em pequenos jardins espalhados pela capital. Há cerca de um ano, tiveram a oportunidade de criar esta horta comunitária, o seu projeto de maior dimensão e que foi tornado possível com o financiamento do programa municipal BIP/ZIP e o apoio logístico da Junta de Freguesia da Penha de França. Há cerca de 400 pessoas a colaborar de uma maneira ou de outra. A base de tudo é a vontade de abrandar a vida e o consumo, pensar numa “visão sustentável para o futuro” e, pelo meio, criar laços. “Sozinhos dificilmente vamos a algum lado”, diz Maria Freitas.

Horizontalidade, cooperação e sustentabilidade

A Associação Regador é apenas um exemplo das várias organizações que estão a promover o consumo responsável e sustentável na capital. De uma forma geral, querem mostrar que há muitas maneiras de contrariar o desperdício e proteger o ambiente. Atuando em diferentes áreas, acabam por ter como base a comunidade.

Um exemplo paradigmático é a cooperativa Rizoma. A sede, localizada na Rua José Estevão, Arroios, é um espaço polivalente, onde, além do mercado “auto-gerido” e abastecido com produção local responsável, há bar, um terraço para eventos, espaço de co-working, armazém e escritório. Na sua génese, o projeto contava com cerca de 30 pessoas. Quando a cooperativa foi oficialmente fundada, em novembro de 2020, eram 40. Neste momento, a comunidade ronda as quatro centenas.

A horta comunitária do Alto da Eira, na freguesia da Penha de França

Filipe Ruão explica que, no seu caso, juntou-se ao projeto por “uma questão política”, já que não se identifica com um modelo de “sociedade vertical”, que diz ser “pouco democrática”. Atraiu-o a dinâmica horizontal da Rizoma. Integrou o coletivo numa fase precoce do seu desenvolvimento, mas nega qualquer papel de responsabilidade ou chefia. “Aqui todos são iguais”, frisa.

O projeto teve o apoio do programa Bairros Saudáveis e da Associação Renovar a Mouraria. Neste momento, o foco é a mercearia comunitária – onde apenas os membros podem adquirir produtos -, mas a ambição é ir além disso e conseguir diversificar a atividade, através das secções de “agricultura, comercialização, cultura, serviços e até habitação”, conforme descrito na página oficial. Por esse motivo, descrevem-se como uma “cooperativa multisectorial”, aberta à participação de todos.

 “A nossa ambição [para o futuro] é criar estruturas legais para que as pessoas possam criar os seus próprios projetos numa alternativa ética à sociedade atual”, garante Filipe Ruão, afirmando que não existe qualquer tipo de hierarquia no seio da Rizoma. “A cooperativa não quer dizer como é que tu vais fazer as coisas. Quer dizer que, se aceitares os pilares da democracia, da transparência, da ecologia, da sustentabilidade social, estás à vontade para entrar e discutir novos projetos horizontais”, explica. “A longo prazo, aquilo que nós queremos é uma sociedade mais ética”.

Nada se perde, tudo se transforma

A ideia de ética no consumo é algo que preocupa Rafael Calado há algum tempo. A prática de comprar e descartar para comprar novo incomodava-o, a ele e a um grupo de amigos. Em 2016, este grupo achou por bem deitar mãos à obra e juntar-se para reparar artigos, de forma a prolongar o seu tempo de vida. A iniciativa seria o primeiro esboço do Repair Café. “Começámos a ter tanta gente a vir ter connosco que tivemos de começar a pensar na gestão das pessoas, dos voluntários e das reparações. Começámos, de alguma maneira, a sistematizar isto”, explica Rafael Calado.

Assim, o grupo informal passou a coletivo, cuja popularidade crescia de mês para mês. A premissa é simples: uma torradeira que não funciona, um casaco que não fecha ou uma televisão com interferências podem ser arranjados, ao invés de descartados. Só é preciso paciência e algumas chaves de fendas.

Reparar em vez de comprar é a premissa que guia o Repair Café

Ao ARTÉRIA, Rafael Calado explica que, muitas vezes, as reparações são simples e fáceis de fazer. “Mais de metade das vezes, [os aparelhos] não precisam de componentes. Ou houve um problema mecânico, de sujidade ou um curto-circuito qualquer”, explica. Apesar disso, quando é necessário substituir peças também sabem como e onde fazê-lo.

O engenho e a prática permitem-lhes evitar o descarte de electrodomésticos, que dizem ser construídos com esse intuito. “O desmontar tem muitos truques, porque eles fazem isto de maneira a não [ser possível]. Ou têm parafusos esquisitos, com cabeças que as pessoas normais não conseguem encontrar, ou têm uns encaixes de plástico que é preciso apertar em três pontos ao mesmo tempo… há “n” truques para não se conseguir arranjar”, diz o responsável que assegura que, nas lojas das marcas, “abrem aquilo em segundos”.

Muitas vezes, só é necessário aceitar que a funcionalidade de um artigo não está ligada à sua aparência. “A nossa cultura passou a ser muito de imagem e qualquer arranhão, qualquer coisa [faz com que o objeto] já não valha nada”, afirma.

Apesar disso, admite que há cada vez mais pessoas a preocuparem-se com a economia circular. E vê isso no aumento de interessados no Repair Café. “Tentamos sempre ajudar e envolver o participante”, explica o fundador, sublinhando que o objetivo é ensinar cada pessoa a reparar de forma autónoma.

Visibilidade e consciencialização

À medida que o Repair Café ganhava adeptos, tornou-se necessário estruturar a organização. Como forma de lhe constituir “suporte legal”, o projeto foi incorporado na Circular Economy Portugal (CEP), uma associação que promove iniciativas de gestão de resíduos e economia circular. “O nosso caixote do lixo é um pouco o demonstrador físico de tudo que nós não estamos a fazer para trás”, diz Andreia Barbosa, membro desta organização.

Definindo-se como “uma rede de empresas e pessoas que promovem a economia circular em pequenas e grandes escalas”, a CEP trabalha sobretudo ao nível da divulgação, promoção e dinamização de projetos concretos desenvolvidos localmente. Também estabelecem parcerias e organizam ações de sensibilização.

A economia circular é uma alternativa ao consumismo

“Acho que, no meio de conceitos que têm relevância e que nós queremos promover, importa depois olhar para o contexto em que eles estão a acontecer”, diz Andreia Barbosa, que critica o greenwashing feito pelas grandes empresas. “Às vezes, há essa perversidade de todas estas boas ideias, supostamente ecológicas, poderem não estar a resolver problema nenhum e serem só uma nova via de consumo que se soma às existentes”, acrescenta. A principal intenção é, por isso, “dar visibilidade” ao conceito de economia circular e incentivar a sua prática.

Uma intenção que, aliás, é partilhada pela Margens Simples, associação que serviu de berço ao projeto “Germinar um Banco de Sementes”. No âmbito deste projeto de educação ambiental, a associação tenta que as escolas estabeleçam uma relação com a comunidade local, tendo as sementes como pretexto. Ao ensinar as crianças a importância da premissa de “circularidade de sementes”, vão sendo abordados temas mais transversais como “agro-sistemas, alterações climáticas, pensamento sistémico, entre outros”, conforme explica Joana Peres, membro da associação.

“A conservação e propagação de sementes é uma prática milenar de soberania alimentar e um direito fundamental de agricultores e comunidades, que se tem vindo a perder, predominantemente em países desenvolvidos, mas que é fundamental para o equilíbrio dos ecossistemas”, explica a responsável.

Encarar as sementes não só como futuras plantas, mas também como elos comunitários

Os alunos da Escola Josefa de Óbidos – uma das cinco que acolheram o projeto – vão percebendo isso mesmo, à medida que António Alexandre lhes entrega pequenos copos biodegradáveis com sementes, durante a aula da manhã. As crianças mergulham os dedos na terra e questionam como a vão regar, enquanto vão repetindo as preocupações que já conhecem. “As pessoas pensam que isto é apenas sobre plantas, mas na verdade é sobre comunidade”, explica o formador enquanto conduz os petizes à horta exterior onde as plantas vão depois ser colocadas.

A ideia de unir comunidades, escolas e sementes surgiu de um misto entre “a notória falta de consciência para o tema, a sentida necessidade de fazer algo e de chegar aos grandes interlocutores de mudança”, que é como quem diz, as novas gerações. “Desta vontade, criou-se tudo o resto”, diz Joana Peres.

Apesar do sucesso e do reconhecimento que tem conquistado – foi selecionado pela Comissão Europeia como projeto inovador em educação ambiental -, a responsável diz que “ainda está tudo no início”, já que há mais jovens com quem pretendem trabalhar. Acima de tudo, querem impulsionar a consciencialização, sublinhando o papel das pessoas. “As nossas sementes não querem ser guardadas, querem ser multiplicadas, preferencialmente todos os anos”, asseguram.

O Artéria é um projecto de jornalismo comunitário. É feito por voluntários, supervisionados por um jornalista profissional.

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