Na sua sempre culta e elegante escrita, Vítor Oliveira Jorge convida-nos desta vez a olharmos com atenção para os néons de estabelecimentos comerciais de Lisboa entretanto encerrados. Isto a propósito do trabalho de recolha e preservação feito por uma dupla de designers. Sinais de vida mundana de épocas não tão distantes, os reclamos luminosos eram muitas vezes, e até há pouco tempo, desvalorizados enquanto património. Mas outra luz incide agora sobre tal acervo. E já se pensa num museu.
Existe em Lisboa uma associação sem fins lucrativos digna de nota e de apoio. A Letreiro Galeria. É devida à militância de duas pessoas extraordinárias, os designers gráficos Rita Múrias e Paulo Barata Corrêa. Desde 2014, correm todo o país, com particular destaque para Lisboa, até por motivos logísticos evidentes, pois os autores vivem cá na cidade, a recolher antigos reclamos luminosos comerciais do século passado, alguns enormes, outros mais pequenos, fora de uso, que reúnem, cuja recuperação promovem e que guardam com o maior cuidado possível em espaços temporariamente cedidos, porque a coleção fabulosa que já conseguiram mereceria um grande museu.
E faço, desde já, daqui um apelo para que quem de direito em Lisboa e na museografia foque a atenção nisto, porque é um património fabuloso – mais de 250 peças de todos os tipos e formatos, provenientes sobretudo de Lisboa, mas também do Porto, Almada, Carcavelos-Cascais, Moscavide-Loures, Sintra, Vila Franca de Xira, entre outros locais – que, de outro modo, estaria condenado ao lixo e, evidentemente, ao olvido. O que seria mais uma perda enorme!
Muitas pessoas desconhecem que toda uma abundância de signos comerciais de variado tipo chegava, dantes, a ocupar quase inteiramente os espaços livres de antigos edifícios, e não apenas a fachada principal ou a entrada das lojas ou outras empresas. Eram cabeleireiros, sapatarias, casas de vestuário, sítios de restauração, hotéis, lojas de venda de automóveis ou oculistas… etc.! E assim a cidade enchia-se de letras, de escrita, que a polvilhava e que chamava a atenção dos transeuntes e potenciais clientes.
Desse modo, a cidade acrescentava, à multidão de estímulos que a define, mais estes, bem visíveis, dignos de toda uma semiologia urbana a que se dedicam as pessoas citadas, e em particular Rita Múrias, que prepara uma tese de doutoramento em Design (a apresentar à Faculdade de Arquitetura), precisamente sobre este tema, em que afanosamente trabalha como colecionadora e como autora há muitos anos, com o seu companheiro.
Como eles próprios escreveram para um dos painéis que estava incluído na exposição “Estabelecimentos. Letreiros Comerciais – Século XX”, que fizeram agora em Lisboa (Edifício IDB, na Praça José Queirós, Rooftop) e já terminou em fim de Novembro: “Acreditamos que a História da cidade pode ser contada através da sua identidade visual. Resgatamos, preservamos e salvaguardamos os letreiros comerciais que estavam desativados, em vias de desaparecer ou ser destruídos.”…E acrescentaram, num tom de apelo: “Se vir algum letreiro que esteja nestas condições, por favor, contacte-nos para o email: letreiro.galeria@gmail.com ou por mensagem para o instagram https://www.instagram.com/letreirogaleria/”
Eles – Rita e Paulo – já realizaram várias outras exposições, como, por exemplo, uma em 2016, no Convento da Trindade, outra em 2020, na “Stolen Books”, em Alvalade, que designaram “Luzes da Cidade”, e outra ainda em 2022 e que intitularam “Brilha Rio”, a qual ocorreu no bairro de Marvila, num parque de estacionamento da “Prata Riverside Village” cedido para o efeito, numa parceria com a plataforma P’La Arte (sobre esta última realização, veja aqui: https://lisboasecreta.co/exposicao-letreiros-e-neons/ ). E, como eles próprios declararam a um dos jornalistas que fez a reportagem da iniciativa, “O nosso objetivo é fazer um museu com os sinais que temos vindo a resgatar, um local onde todos possam usufruir de uma memória gráfica que tem vindo a desaparecer nas ruas de Lisboa.”
Claro que os nossos amigos não são meros colecionadores de antiguidades, mas sim verdadeiros “arqueólogos urbanos”, investigadores de um tipo muito pouco frequente, porque dedicado a uma memória recente da cidade, mas, na verdade, algo que fisicamente tende a desaparecer no alvoroço da modernização. De facto, eles integram esse espólio imenso em todo o seu contexto, pelo que investigam em arquivos – Arquivo Municipal de Lisboa, Arquivo Fotográfico da Fundação Gulbenkian, Arquivo da Torre do Tombo, e por aí fora… -, gravam entrevistas com pessoas idosas, procuram documentos associados, como antigos pedidos de licenciamento, etc.
Enfim, é toda uma cenografia urbana em desaparecimento ou já extinta, que vai desde o som do amolador de facas e tesouras até ao registo sonoro dos pregões das peixeiras ou outros vendedores ambulantes. Estes registos sonoros são da autoria da “Música Portuguesa a Gostar dela Própria” – projeto maravilhoso que pode conhecer aqui: https://amusicaportuguesaagostardelapropria.org. Ou seja, com este trabalho de várias entidades, é toda uma cidade que vai desaparecendo e que os mais velhos gostam de recordar e os mais novos têm todo o interesse em conhecer. Porque nada há mais dinâmico – e misterioso – do que uma cidade, onde estão sempre incontáveis coisas a acontecer, e a alterar o seu visual.
É portanto uma vida inteira das ruas – de Lisboa em particular – que assim revive e de novo se expõe, em imagens, letras, cores, sons, povoada de pessoas de todas as condições sociais, desde os habitantes da periferia que vinham à cidade trazer os seus produtos “frescos”, ou, por exemplo, os seus perus de Natal, entre tantas outras “ofertas”, para venda, até às pessoas frequentadoras das ruas mais “chiques”.
A coleção contém então peças provindas da Avenida Almirante Reis, da Avenida de Roma, da Baixa Pombalina – com destaque para a Rua do Ouro e Rua Augusta (Casa Frazão, por exemplo) -, do Rossio (saudosa Pastelaria Suíça), Chiado (Rua Garrett), do Hotel Ritz da Rua Rodrigo da Fonseca, da Rua Alexandre Herculano (Sapataria Cerimónia), e inclui, mesmo, um painel de desenhos publicitários da BP – guardado décadas a fio numa garagem da Rua Rodrigues Sampaio -, da autoria do artista Fernando Bento.
É um acervo que está em constante enriquecimento, porque a Rita e o Paulo são pessoas apaixonadas pelo que fazem, conscientes da importância da sua autoatribuída missão: e só assim se é feliz, com um objetivo que satisfaça os próprios e que seja útil ao bem coletivo. E, portanto, vivem num frenesim criativo constante, que eu tive a sorte de conhecer recentemente, ouvindo uma “conversa” que foram fazer a casa de uma amiga comum. E a todos agradeço muito, de facto, por ter tomado contacto com um dos muitos temas que desconhecia.
Uma das peças muito bonitas, ou raras, gentilmente cedida pela empresa Neolux para esta exposição que visitei, era uma caixa de tipo mala-mostruário de cores, que os feitores de letreiros luminosos levavam consigo para os clientes escolherem a gama de cores que desejavam conjugar no seu “anúncio”: mais quentes, da gama do néon, em tons de vermelho, laranja, amarelo; mais frias, da gama do árgon, azul, verde, etc. Mas há de tudo na coleção recolhida e só em parte exposta, claro: para além de documentos escritos e fotográficos, tabuletas de vidro ou de plástico, néons, portas corta-vento, caixas de luz, letras em metal, etc. A amostragem é tão rica e variada que me obriga a estar sempre a acrescentar “e etc.” ao texto…
O que é, de facto, um néon, genericamente falando? É um reclamo luminoso, que evidentemente pode ter as mais variadas formas e dimensões, usando tubos direitos ou moldados, os quais contêm gases que lhes atribuem a cor escolhida, uma vez associados a pós e à lâmpada que lhes atribui o aspeto final. Consegue-se assim um efeito luminoso que identifica, à distância, o estabelecimento e, supostamente, atrai o comprador interessado.
Evidentemente que, ao serem abandonados em favor de técnicas de sinalização, comercial ou não, mais modernas, como as que usam lâmpadas Led, e outras, é isso que permite o seu descarte e, finalmente, nos casos afortunados, a sua recuperação pela Letreiro Galeria, que cuidadosamente os recolhe, ou desmonta mesmo, por vezes em condições de algum risco de acidente (para a peça ou para quem realiza o trabalho). E até os manda recuperar a artífices com os quais está em contacto e que, felizmente, ainda existem, como ainda estão ativas fábricas deste tipo de letreiros luminosos mais “clássicos”, como a já citada Neolux (passe a “publicidade”…), aqui de Santo Antão do Tojal, Loures, concelho onde habito.
Letreiro, letras, livro, imagem: a cidade é uma realidade escrita e “decorada” artificialmente, plena de sinais, avisos, indicações, chamamentos, signos que por toda a parte fazem a surpresa do visitante. Desde o “turista”, que vem de outras cidades, e de outros sistemas de signos, até ao “rural”, que provém de um mundo onde os sinais – sonoros, visuais, odoríferos, toda a envolvente – estão mais próximos daquilo a que convencionámos chamar “natureza”…embora estas dicotomias se vão todas esbatendo. Ou então, esses signos já criaram, até certo ponto, uma tal habituação ao urbanita, bombardeado, por assim dizer, por imagens, que ele já passa por todo esse mundo a correr. E, às vezes, não vê o mais óbvio. Não fotografa aquilo por que passa todos os dias, mas onde o visitante se detém.
Não foi porém esse não-olhar, ou essa mirada distraída ou indiferente, o que caracterizou desde o início desta aventura a Rita Múrias e o Paulo Corrêa. Eles começaram por fotografar todos estes “emblemas” da vida urbana. E, ao verem-nos progressivamente desaparecer, deitaram as mãos à cabeça e disseram para si próprios: temos de salvar isto, porque é uma memória, como se disse, que se inscreve no meio-ambiente da urbe, ao mesmo título dos pregões ou do ruído das “mais desvairadas gentes” que a procuram, ou das viaturas, puxadas antigamente por animais, e agora por muitos “cavalos” de motor, que a atravessam.
E ainda bem que há pessoas despertas para o que acontece ou vai desaparecendo na cidade. Onde tudo, tudo, tudo, está em permanente nascimento e permanente falecimento. E é bom que haja quem deseje a todo o custo lutar contra a poeira do tempo, contrariar a robotização das pessoas. E mostrar-nos assim, no presente, o brilho polido, quase ofuscante por vezes, e sempre renovado, de Lisboa, a branca, bela entre todas, nossa cidade. A quem, por ser de tal modo alva, ficam bem, sempre, quaisquer cores.
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