Nos bastidores ouve-se um burburinho nervoso. Trocam-se palavras em surdina, para que não se ouçam para lá das pesadas portas que separam o camarim dos olhos expectantes do público. “Já são nove e vinte?”, pergunta um dos comediantes, que conta impacientemente os minutos até ter de entrar em palco.
O dia escurece lá fora e no Teatro Bocage, um espaço recatado situado numa rua íngreme da freguesia de Arroios a caminho do bairro da Graça, os últimos preparativos são feitos antes de se dar início à programação prevista. A última sexta-feira do mês de Abril é para os amantes de humor negro, que preenchem a lotação total da sala.
Os seis comediantes que compõem o cartaz preparam-se, cada um à sua maneira, retocando texto e ensaiando em voz baixa, para contar as suas piadas mais insalubres. “Estou a tentar reter os meus interiores cá dentro”, diz Pedro Soares, enquanto agarra o bloco de notas que o acompanhará em palco. Do outro lado da cortina, a música verte dos altifalantes, reverberando dos cantos da sala, para aquecer a plateia. Uma mistura de entusiasmo e nervosismo é a combinação perfeita para alimentar a adrenalina que cada atuação consome: “O dia em que perdemos isto é o dia em que não estamos cá a fazer nada”, reforça Pedro e toma o seu lugar na coxia ao lado de Tiago Paixão, que se prepara para apresentar o primeiro humorista.
A música já não toca, mas Tiago mantém o entusiasmo: salta para ativar a circulação e esfrega as palmas das mãos. É o anfitrião do espetáculo de hoje, proporcionado pelo Chiado Comedy Club, na Avenida Duque de Loulé, uma iniciativa do próprio e que reúne artistas no início de carreira.
Há seis anos, estaria ele a tomar pela primeira vez o centro das atenções num palco de stand-up. “Está tudo bem disposto?”, pergunta o comediante, sendo recebido por uma resposta pouco entusiástica. A função de um anfitrião – cargo que se propõe a fazer 80% das vezes que dá um espetáculo- é de animar o público para que quem vai atuar conte com uma audiência que já entrou no espírito da noite. Habituado a uma resistência inicial, o comediante de 36 anos dá umas pancadas no microfone e questiona de novo: “Está tudo pronto?”. Agora, recebe a resposta que procura. A plateia irrompe em aplauso.
O circuito de stand-up em Portugal é relativamente recente, e na capital apenas se começou a popularizar há cerca de um ano, com a inauguração do Lisboa Comedy Club (LLC), o único espaço exclusivamente dedicado a noites de stand-up comedy. Com dois pisos distintos, onde a sala principal se desdobra num espaço de restauração com direito a entretenimento, o LCC é um ponto de partida para muitos artistas: “Nós, todos os dias, damos cinco minutos aos open-mics, ou seja, pessoas que nunca fizeram stand-up ou estão a começar e querem vir aqui ao Comedy Club dar-se a conhecer”, explica Carolina Arnaud, que desde Setembro passado está encarregada de “levar o barco para a frente” enquanto gerente.
As escadas que vão dar ao piso inferior estão vedadas por uma corda de veludo. Só entra no The Famous Grouse Room quem comprou bilhetes previamente. A sala privada tem uma lotação de cerca de 100 pessoas e está reservada a nomes mais conhecidos da comédia. Gilmário Vemba foi o mais recente convidado, mas Rui Sinel de Cordes e Luís Franco Bastos também já aqui atuaram para uma plateia recheada.
No Lisboa Comedy Club, o espetáculo é longo, com pausas para digerir o conteúdo e a comida. Entre sets, o período de cinco minutos que dura uma atuação, há quem retome conversas interrompidas, peça mais uma cerveja ou ainda, como Alexandre Pinto, faça das mesas seu escritório. É um estudioso da comédia, mas considera ainda não ter material suficiente para criar o próprio texto. “Gosto muito de estrutura, gosto de coisas envolventes, que começam e acabam. Onde, pelo meio, o comediante segure a atenção do público”, revela Alexandre.
Tem 26 anos e é oriundo de Braga, onde tem a oportunidade de atuar com um grupo académico. “Aqui em Portugal, a cultura de open-mics é muito estranha. Esperas dois, três meses, vais preparando o texto… Tenho dois open-mics marcados já, um aqui, outro no ‘Camones’. Vamos ver”. Os iniciantes deparam-se com um meio saturado. Todos os dias, novos talentos se estreiam no Lisboa Comedy Club, e a lista de espera é bastante extensa.
Lapidar o diamante
Leonardo Silva é o primeiro dos seis a ser chamado para a luz da ribalta. “Nasci pronto”, afirma, momentos antes de entrar em palco, com a confiança de um veterano. Na verdade, conta com pouco mais de um ano e meio de experiência. Ganhou o gosto pela comédia desde cedo: “Ser estúpido é a minha maior qualidade. Sempre que estou com amigos, sou um macaco de primeira”, confessa o comediante de 23 anos.
À medida que vai emergindo no meio, somando atuações todas as noites, Leonardo procura terminar os estudos. A possibilidade de viver exclusivamente do stand-up comedy é um sonho para quem ainda não está estabelecido no circuito. Mas enquanto esse sonho não se concretiza, é necessário manter uma ocupação primária que pague as contas no final do mês ou, como no caso de Leonardo, ofereça a possibilidade de outro futuro.
Pedro Soares, de 37 anos, recorta acontecimentos do seu dia-a-dia enquanto professor de educação física numa escola primária e transfigura-os para o plano humorístico. Sempre um adepto fervoroso de humor negro, espera nunca ter algum dos seus alunos na audiência. “Nem pais! A ironia escapa a algumas pessoas”, desabafa.
Perto do final do set do colega, que arranca as últimas gargalhadas, Pedro dirige-se em sussurro a Tiago Paixão, perguntando-lhe quanto tempo de antena lhe será dado. “Vais cortar até ao milissegundo, não vais?”, pergunta, sem esperar obter resposta, o mentor de 36 anos que já conhece as particularidades de cada um dos artistas. Pedro é metódico, estuda através de gravações de voz, escolhendo cada palavra. Leonardo diverte-se com o público em palco, não tendo reservas no que conta à linguagem. “Nem toda a gente nasce para isto. Consegue-se ensinar técnicas de escrita e de falar em palco, mas aquilo que faz rir tem de vir de dentro… Podes ensinar só a lapidar o diamante”. Tiago não tira os olhos de quem atua, enquanto dá indicações. “Tens nove minutos”, responde.
“Se uma piada resulta aqui, resulta em muitos lados”
Tiago Paixão não se desfaz facilmente do papel de formador. Ouve e analisa casualmente as atuações dos humoristas que se seguem em palco. “Este foi forte… Este nem por isso…”, tece críticas com uma precisão que chega às pausas entre piadas. Constantemente com esta visão analítica da comédia, tem dificuldade em desfrutar do espetáculo enquanto mero espetador: “Já não me divirto a ver stand-up. Nem eu, nem ninguém que anda nisto. Nós já estamos mais ou menos a ver para onde é que o comediante vai”.
Sentado na sua mesa habitual, perto da porta de saída que dá para a escadaria enfeitada com molduras do Camones Cine Bar, na Graça, preenche uma folha de papel com as palavras chave da atuação. É aqui que vem quando precisa de testar texto novo. “É acolhedor, tem um bom ambiente e se uma piada resulta aqui, resulta em muitos lados”, diz o comediante. Familiarizado com o ambiente do Camones, Tiago não tem dúvidas de que está perante um público difícil. “Mas difícil no bom sentido”, acrescenta, enquanto vai recordando atuações prévias com plateias que não respeitavam o silêncio de que o stand-up precisa. “Aqui não, aqui, normalmente, as pessoas estão caladas e com atenção. Mas é um público, digamos, um bocado sensível”.
Laura entra em cena. De braços erguidos, faz o percurso da porta ao palco, evitando alguns obstáculos pelo meio, sempre a correr. “Boa noite! Vocês estão bem?”, canta ao microfone, quando finalmente as luzes do palco a iluminam. O sotaque francês sobressai nas vogais e nos fins de frase. Veio para Portugal há cinco anos com o marido e os dois filhos, com sonhos de abrir uma loja de crepes na Graça.
O stand-up veio depois, no seguimento de um telefonema da produção da TVI, para o “Programa da Cristina”. “Não sabia porquê… o programa só me contactou e disse que estava à procura de alguém para dar uma aula de francês à Cristina”, explica com entusiasmo. A experiência terá corrido de tal forma bem que, na mesma semana, estaria a receber outra chamada do programa a pedir que regressasse. “Fiquei lá uma hora e, quando saí, percebi que tinha de fazer alguma coisa relacionada com o público”. Foi a partir daqui que Laura Gonçalves, aliando a vontade de interagir com as pessoas com o gosto pela escrita, começou a elaborar os primeiros textos na esperança de um dia os apresentar a uma audiência. Já lá vão três anos e várias atuações.
No Camones, tem o papel de anfitriã das noites de stand-up. A comediante de 35 anos apresenta-se em palco a fresco, sem preparação prévia. “O meu objetivo não é fazer rir. É, sobretudo, criar uma ligação entre as pessoas para que elas estejam prontas para se rirem dos comediantes”. Com estilos diferentes, mas funções idênticas, Tiago e Laura são o elo que liga os bastidores e a plateia, “O meu papel é mais fazer jogos, falar com as pessoas, conhecê-las para ajudar os comediantes, como uma espécie de bengala”.
“Ritmo, cadência e ondulação”
Algumas palmas dispersas mascaram o silêncio peculiar que paira sobre a sala do Camones após a última atuação. Atenta, Laura concretiza o seu dever de “bengala” e apodera-se do microfone para retomar alguma da energia.
João Santos, de 28 anos, acaba de se estrear para uma audiência que até um entendido sobre o assunto admite ser difícil. “Achei o público pouco recetivo”, diz o comediante em jeito de desabafo. “ Não sei se eles não se identificaram tanto com as piadas ou se não estiveram a prestar total atenção”. Porém, não desanima. Com apenas nove atuações realizadas – sendo que muitos, ainda considerados iniciantes, rondam as 40 -, encara a noite de hoje como uma lição: “Onde o público é mais difícil é onde se tiram mais conclusões acerca do que se pode melhorar. Acaba por ser mais conclusivo onde é que podes mexer no texto, onde é que podes melhorar para no futuro vir a correr melhor”.
Não se trata de otimismo. Regra geral, um texto não está pronto até ser testado várias vezes e em diferentes espaços. Por detrás da criação de uma atuação está toda uma arte que evolui através da tentativa, do erro. “Cada palavra faz a diferença, cada pausa, suspiro, faz a diferença”, reflete Rodrigo Leite, um comediante oriundo de Alcochete, que já faz parte do circuito há cerca de um ano.
Rodrigo é o penúltimo nome no cartaz do Teatro Bocage, onde marcará a chegada ao fim de mais uma noite de humor negro. Aprendeu com o formador Tiago a encadear as piadas, a dar sentido e continuidade ao texto. No entanto, há certas coisas que considera não poderem ser ensinadas: “Há uma formação específica que não se aprende em workshops. Tem a ver com o ritmo”.
Enquanto técnico superior num museu, a sua profissão primária, está habituado a analisar a harmonia da composição nas obras expostas. Na comédia, a lógica é a mesma. “O que torna uma obra de arte uma obra de arte? A ideia de ritmo, de deleite. Na comédia é semelhante, tu sentes o ritmo, a cadência, a ondulação… há uma parte técnica de escrita, mas tu saberes que é aquela piada e não outra, tem a ver com sentir a música. Tu sentes a música da piada”.
Mais uma rajada de palmas é arrancada da plateia e Rodrigo suspira. Antes de entrar em cena, dá uma vista de olhos nas notas da atuação. “Nem sei como me estou a sentir”, diz, enquanto solta um riso nervoso. “Vou tentar fazer coisas novas, ouvi-las pela primeira vez a saírem da minha boca. Há umas que sei que resultam, outras nem por isso. Seja o que for”.
O Artéria é um projecto de jornalismo comunitário. É feito por voluntários, supervisionados por um jornalista profissional.