“Toda a gente, quando chamada a participar sobre o que lhe interessa, tem intervenção válida”

21 de Outubro, 2022
Arquitecto com pós-gradução em urbanismo, Gonçalo Folgado é um dos mais destacados activistas da vida comunitária em Lisboa. Aos 36 anos, evidencia-se na dinamização de processos de mudança a nível local na capital. Um percurso iniciado ainda enquanto estudante da Faculdade de Arquitectura, ao idealizar a requalificação do vizinho Bairro 2 de Maio, na Ajuda. Move-o a firme crença na capacidade de transformação social pela junção de esforços e através da participação cidadã. Que não tem de se cingir a territórios “carenciados”, diz. Haja vontade, tudo se consegue, poderia ser o seu lema e o da associação Locals Approach, de que é um dos fundadores.

Entrevista

Samuel Alemão

Artéria: Fazendo uma pesquisa não exaustiva sobre vida comunitária em Lisboa e projectos de base, o teu nome surge recorrentemente. Percebe-se que és uma pessoa bastante envolvida com a comunidade. Como é que isto começou? Donde vem este interesse?

Gonçalo Folgado: Foi uma “pancada” que me deu aqui na faculdade com outros colegas, quando começámos a explorar grandes arquitectos, grandes planos de urbanismo, a ter contacto com o estado da arte desta profissão. Deparas-te com o sítio onde estás a estudar, que é um campus universitário com um plano inacabado e com as fronteiras por trabalhar, com território completamente fragmentado. Isto em 2009/2010, quando começámos a ter alguma tomada de consciência sobre a coisa. Na verdade, isto até vem um pouco de antes, de 2008, quando me meto numa campanha autárquica e decido que quero ver como é isto. É que estar sempre de fora a mandar bitaites e a dizer “eu fazia assim e assado“…Passei a ver como eram as coisas e a ouvir as propostas. Foi aquela coisa um bocado inocente de miúdo, disse para mim “Isto é fixe, isto faz sentido“. Queria ir mais a fundo na coisa.

Depois, na faculdade, tenho aqui uma série de cadeiras optativas, com uma série de professores, que me levaram a ter um olhar diferente. Isso também aconteceu com os meus colegas e começámos a ficar mais questionantes sobre o que é fazer arquitectura, sobre o que é produzir território. Essas dúvidas vêm ao de cima e deu-nos literalmente na cabeça para saltarmos aqui para o bairro da frente, para o Bairro 2 de Maio, a oferecer serviços aos moradores.

Chegámos lá, dissemos-lhes: “Malta, gostaríamos de fazer aqui qualquer coisa“. O pessoal do bairro disse: “estes gajos são malucos”. Aparece-te ali um grupo de três ou quatro gajos vindos do nada, da faculdade da frente, a dizerem que querem fazer coisas…Tivemos o apoio, numa primeira fase, do Mariano, um líder da comunidade cigana do 2 de Maio, que nos disse: “Bora, vamos a isso! Vamos ver o que é que estes gajos querem fazer“.

Eles não pensaram que vocês tinham alguma intenção escondida?

Claro! Pensaram que tínhamos alguma agenda…Mas havia e há! (risos)….Claro que havia uma agenda. A primeira agenda passa, sobretudo, por que a profissão possa fazer um pouco mais de sentido na forma como é exercida e até de explorar as ferramentas que tínhamos. Aquele coisa de pensarmos “será que somos capazes? será que não somos?“. Mas também a qualificação do território. E quem disser que faz isto e não está à espera de obter reconhecimento está a mentir. Claro que sim, claro que é também uma oportunidade gigantesca…se calhar, na altura, não estava tão consciente dessa montra. Mas pensámos “se conseguirmos fazer aqui uma coisa simples, conseguimos fazer em qualquer lado”. É um bocado à Nova Iorque, se fazes aqui, fazes em qualquer lado. Não tem de ser só em Nova Iorque. Pode ser do outro lado da estrada.

E, de facto, começámos a estabelecer esta ligação com a comunidade. Mas percebemos logo “isto não vai dar para fazer aquilo que a gente estava a pensar”, que era aquela visão típica de pormos um mobiliário urbano aqui e outro ali, aquela visão muito espacialista. Foi quando começámos a perceber que, realmente, as necessidades do local eram outras e que não tínhamos envergadura para dar respostas de cariz social…e societal. Porque, na verdade, era uma mistura de várias dimensões: económico, educativo, cultural, ambiental. Há aqui uma dimensão integrada que tem de ser desenhada. E quando percebemos a complexidade da coisa…Nós percebemos “ok, isto é urbanismo, isto não é arquitectura, isto aqui já estamos a entrar no campo da política urbana“. Percebemos que isto ainda era mais difícil do que havíamos pensado, mas dissemos “então, bora!” (risos)…

O que é que vocês começaram a fazer no bairro?

A primeira coisa foi perguntar “em que é que vos podemos ser úteis?“. Passou aquela fase em que eles perceberam “estes tipos são para confiar”. Passada essa fase, viemos para a faculdade, viemos chorar aqui ao gabinete da professora Isabel Raposo e dizer-lhe “professora, vamos fazer qualquer coisa no bairro aqui ao lado”. Ela perguntou-nos qual era nossa ideia e nós dissemos-lhe que íamos com uma ideia X, mas agora temos outras…(risos)…Se calhar, o que era importante, disse ela, era fazer um diagnóstico a sério. Disse-nos para montarmos o nosso caso e fazer uma apresentação a alunos internacionais de um programa de mestrado em Ordenamento do Território, juntando várias especialidades. Fizemos a apresentação, eles gostaram da ideia e vieram connosco para o território.

Então, o primeiro momento da intervenção passa pelo diagnóstico, é aí que tu aprendes uma lição interessante, que é: a partir do momento em que tu estás a diagnosticar, já está a fazer qualquer coisa. Fizemos um relatório urbano com muita categoria, que nos permitiu olhar para o bairro através de outras perspectivas que não só aquela lente pela qual íamos formatados enquanto arquitectos e urbanistas. A partir daí…Parecíamos maluquinhos, com turmas de gajos italianos, gregos, espanhóis. Aquilo era um ‘portunhol’, com eles a falarem com as pessoas e a produzirem.

E o que é que produziram, concretamente?

Este diagnóstico. Um grupo estava a trabalhar sobre as lojas do bairro, outro estava a trabalhar sobre o espaço público, outros sobre a história, outro sobre o enquadramento dos planos de urbanização para esta zona que ficaram na gaveta.

Quais foram as principais carências que encontraram no bairro?

A falta de espaços comunitários era logo daquelas que saltava à vista. Não havia aqui equipamentos para os miúdos ou para os idosos. Faltavam estruturas básicas de apoio à comunidade. Agora, está com falta de comércio, é um facto. Era também a falta de qualificação do espaço público e o sentimento de abandono que as pessoas tinham em relação a tudo o resto. Uma das queixas que mais faziam era “nunca aparecemos no boletim da Gebalis!”.

A visibilidade….

Mais do que a visibilidade, é a tua autoestima. A autoestima de pertencer a este sítio e este sítio não ser reconhecido por outros por ser um sítio óptimo. Costumo dizer que o 2 de Maio é dos sítios bonitos do mundo.

E depois, o que é que fizeram com o diagnóstico?

Começámos a congregar as entidades que trabalhavam no território, associações com fins sociais, a junta de freguesia, a associação de moradores, a faculdade de arquitectura, o nosso grupo informal – constituímo-nos como um grupo informal, não queríamos fazer isto ao abrigo de uma cadeira da faculdade, mas queríamos estar ao mesmo nível que os outros à mesa. Por acaso, é engraçado estar a recordar isso agora, pois, na altura, estávamos a tomar os passos totalmente por impulso! (risos)

Começámos a codesenhar um plano de acção para o bairro. Um plano de acção local, que tinha sete eixos. Eram as hortas urbanas, os animais, o espaço público, os equipamentos…Tínhamos assim um plano de acção bastante ambicioso. Não tínhamos forma sequer de executar aquilo. Mas pensámos “Bora fazer!”. Um dia, venho aqui à faculdade de arquitectura, a convite do professor Gorjão Jorge, apresentar o trabalho que estávamos a fazer. Na altura, estava o arquitecto Miguel Brito, que era director de departamento responsável pelo programa BIP/ZIP da Câmara Municipal de Lisboa, que nos diz assim: “Olhem, vocês têm uma candidatura. Isto é um projecto. Vocês façam o favor de se candidatar. É fácil“. Quando começámos a fazer o formulário…então e agora? E nós dissemos “vamos, siga!“. Tivemos apoio aqui da faculdade.

Quando ganhámos o projecto, a universidade é um dos parceiros oficiais. E tivemos o projecto “Bairro 2 de Maio todo os dias”, de 2013, que tem ali uma intervenção – tenho que dizê-lo de uma forma muito pouco modesta -…avassaladora no território. Fizemos um carnaval de coisas. Desde a requalificação da Casa para Todos, que agora já foi requalificada, após esta primeira intervenção. Intervencionámos um dos corações do bairro, o antigo ATL, que passa a ser um local de decisão colectivo. E o que é um local de decisão colectivo? É um local com porta aberta, com coisas a acontecer.

E, a partir daí, a malta começa a acreditar, porque, até aí, a malta do bairro acarinhava-nos por sermos muito simpáticos e afáveis e por termos uma maluqueira saudável. Mas eles diziam-nos “Vocês estão a perder tempo aqui, isto aqui não se passa nada. Não vai acontecer nada“. A partir do momento em que começam a ver as coisas a acontecer…ui! “Afinal é possível“, pensaram. E fizemos um conjunto de intervenções ainda bastante alargado e diversificado.

Desde a requalificação do espaço público à requalificação de espaços interiores, ao engajamento comunitário, à sensibilização, à própria avaliação de projecto, à produção científica dos impactos que estávamos a gerar aqui com a faculdade, o enquadramento deste tipo de intervenções no sistema de gestão territorial português, que – não tendo esse enquadramento, é um forma de produção de cidade, que não digo legítima, porque ainda falta legislar bastante – é altamente impactante. Começámos também a ganhar muita consciência do que estava a ser feito nesse projecto.

Foi aí que surgiu a Locals Approach?

A Locals Approach surge a partir daqui. Porque nós, enquanto grupo informal, começámos a perceber que a nossa intervenção no projecto…não éramos meros operacionais, estávamos a fazer gestão de projecto. Então, pensámos em levar as coisas a sério e vamos formar a Locals Approach.

Foi neste processo que percebeste que o engajamento comunitário não é uma coisa algo teórica, mas pode ser posto em prática, tendo resultados efectivos…

Sim, completamente, completamente. Em campanhas eleitorais, estás no campo da utopia. Quando ganhas, podes implementar. Quando perdes, também podes implementar, mas também estás sempre cativo…

A partir desse momento, saltaste para outras etapas, foste avançando nessa propensão de cariz comunitário, de trabalho de base, colaborativo…

Mais do que comunitário e colaborativo, vejo isto tudo como uma forma integrada de se trabalhar os diferentes sistemas que compõem o território. Neste caso, a cidade, mas pode ser também meio rural. Mas existem redes e sistemas urbanos que se cruzam e que se confrontam diariamente. A habitação com a saúde, a saúde com o emprego, o emprego com o transporte, este com a habitação e o ambiente. Portanto, todas estas dimensões estão em contacto directo.

Enquanto urbanista, este é o grande desafio, perceberes como é que ligas os inputs com os outputs e conseguir conciliar tudo isto de uma forma bastante integrada. E foi esse o trabalho que percebemos que estávamos a fazer e que, com o input da comunidade, exponencias os teus impactos de uma forma cavalar. Porque é aqui que entram as inteligências colectivas. A miríade de soluções que se ganham ao estares a fazer isto. É altamente transformador.

Isso é o que tens sentido em todas as intervenções que tens feito na cidade?

Claro. Em todas, independentemente do tipo de público com que se trabalha. Seja um público com maior fragilidade sócio-económica, seja um público mais abastado e estabelecido, seja um público de classe média. Todas as pessoas, quando são chamadas à participação, e quando é algo que as interessa e que lhes retém a atenção, têm intervenção válida e capaz. Muitas vezes, os técnicos, por via de alguns pruridos ou anti-corpos que tenham em relação a outras questões – seja alguma insegurança das pessoas ou algo do género…mesmo assim, as pessoas trazem-nos sumo. Agora, cabe-nos a nós, enquanto técnicos, também entender o que se consegue extrair e onde é que se vai colocar. Também não podemos ficar reféns da participação, porque, caso contrário, perdes o fio à meada, porque há uma gestão de expectativas, há uma gestão de orçamento, da própria legislação.

Achas que, nesse aspecto, a nossa sociedade, e em particular em Lisboa, está muito mais madura do que estava há dez anos?

Naturalmente. E aqui a Helena Roseta é uma peça chave neste puzzle. De cada vez que falo com ela, digo-lhe que, se não fosse ela, não sabia o que andava a fazer da vida. Do ponto de vista profissional, tenho tido uma sorte tremenda, porque me tenho cruzado com as pessoas certas na altura certa. A Isabel Raposo, se não tivesse aquela disponibilidade para receber aqui quatro putos…A Manuela Mendes, a Teresa Sá, o Gorjão Jorge, o Miguel Gama. Vou esquecer-me de pessoas. Tenho tido muita sorte de encontrar esses pontos de apoio.

Mas a Helena Roseta…

Ela é fundamental por causa do BIP/ZIP. Ela inventa o BIP/ZIP do nada, com uma verba mínima, de uma inteligência financeira e emocional, que tomara eu um dia ter um décimo do que aquela senhora sabe neste momento. E transforma a cidade, transformando os seus actores, emancipando muitas das liderança comunitárias. E também é reinventar a forma como se produz território. É claro que tudo isto já foi ensaiado no SAAL, em vários pontos do país, mas, na verdade, o programa BIP/ZIP é dos mais transformadores.

Isto em simultâneo com o Orçamento Participativo de Lisboa.

Sim…Em relação ao OP…

Tens uma visão algo distinta…

Tenho um visão…não lhe quero chamar distinta. Nenhuma ferramenta se sobrepõe a outra, trabalham todas em uníssono. Acho que tudo quanto sejam ferramentas de participação são ferramentas que não fazem aqui uma sobreposição, mas trabalham todas no mesmo leque. É como se fossem aquelas caixinhas de ferramentas que o canalizador leva lá a casa. Mas o OP, por não dar ao cidadão a possibilidade de implementar o projecto, acaba por ser um pouco mais limitado nesse sentido. O que também abre a possibilidade para os cidadãos que não querem implementar projectos, mas querem contribuir com ideais, também o possam fazer.

Tudo quanto sejam formas de participação é bem vindo. Têm é que ser estruturadas e concertadas entre si. E é aí que talvez eu possa ser um pouco mais crítico. Temos um conjunto de programas que não é assim tão vasto quanto isso, mas que, às vezes, não comunica tanto quanto deveria. E eu ainda poderia ser mais crítico – e eu aí, sim, sou bastante feroz, independentemente das cores políticas que lá estejam – é que…

O Adam Smith tinha razão numa coisa: há uma mão invisível que regula tudo, que é a mão do mercado. Ela está cá. Onde é que eu acho que o Adam Smith não viu? É que por baixo da mão invisível que regula o mercado, tens uma outra mão muito mais forte, que é a mão do bem estar e da boa vizinhança, ou seja, da democracia. Só tenho uma loja aberta porque tenho vizinhos que estão ali a vigiar a coisa, porque tenho segurança na rua, tenho segurança nos laços da comunidade que está ali à volta. Não podes abrir uma loja num cenário de guerra.

Apelamos ao fortalecimento de laços comunitários, de sentido de pertença e de identidade dos próprios territórios, de sentir o meu bairro como sinto o meu clube. Ao fomentar esta coisa, se o meu vizinho estiver bem, eu vou estar bem também. É a mesma coisa que num board de executivos de uma grande empresa. Se os meus accionistas estão bem, eu vou estar bem também.

E aí, sim, sou crítico. E porquê? Porque temos muito pouco investimento para programas, para implementar este tipo de soluções, que só por esta valência comunitária e das componentes relacionais, interpessoais, já valem a pena. Se agora me aparecesse aqui um indivíduo de fato e gravata e com uma folha Excel, eu, ainda assim, optaria sempre pela participação por esta via. O ganho que isto traz para a inteligência colectiva para a resolução de problemas…caramba, falamos em smart cities e em aplicações…Andamos todos aqui com este discurso todo inglesado…

Achas que há um discurso formatado sobre o futuro das cidades?

Claro! Claro. O Alain Bourdin fala de uma coisa que são as línguas de madeira. Que é quando as palavras começam a ganhar um sentido que…Veja-se, depois: “sustentabilidade”…Já ninguém apanha com sustentabilidade.

Achas que a participação pode também converter-se numa “língua de madeira”?

Pode acontecer, sim. Espero que não caia nisso. Sou um optimista por natureza e acho que, com o “hype” que a participação começa a ter neste momento, é altura daqueles que estão no sector se consigam congregar entre si e não ver a coisa como concorrência. Todas as organizações que apareçam por esse Portugal fora e em Lisboa são, à partida, parceiros. Nunca concorrentes.

Mas o que é que se pode fazer para que a participação não se converta num chavão?

Primeiro que tudo, tem que ser uma coisa que não é ideológica. A participação é uma ferramenta.

Mas, neste momento, ainda é ideológica?

Tendencialmente, poderá ser. Sinto que, hoje em dia, já é algo que…felizmente, já vejo municípios de esquerda e de direita a aplicarem metodologias participativas, mas o exercício tem de ir muito mais a fundo.

Mas em Lisboa, concretamente…

Em Lisboa, concretamente, acho que o caminho está a ser feito. O contributo da Helena Roseta aqui é fundamental. Acho que a Helena, com o BIP/ZIP, conseguiu abrir o léxico de aquilo que são ferramentas de participação e formas de interacção comunitária…

Mas eu perguntava-te isto por causa do OP. Qual é o conjunto de problemas que encontras?

Enquanto cidadão, gostaria muito de poder implementar um projecto do OP que estivesse pensado para fazer com uma determinada comunidade. Na verdade, temos um projecto ganho na Penha de França, que, devido à minha vida profissional, ainda não me deixou ir a fundo. Gostava que essa possibilidade fosse conferida às pessoas que propõem. Quem não quer, não faz, mas que quem quer possa avançar. Estas coisas, quando são feitas com insígnias da sociedade civil – ou seja, quando não são só feitas pelo poder local -, a abertura das pessoas é diferente. Porque não há aquela cobrança. E o facto de levarem essa abordagem, essa atitude, esse estado de alma para uma sessão de participação é manifestamente diferente. Porque tens momentos em que tens de reivindicar e tens momentos em que tens de criar. Reivindicação é um motor, mas a criação é o outro motor.

Ou seja, é necessária sempre uma ligação com o poder político para se fazer as coisas…

Naturalmente, tem de ser. Aí, é fundamental que o poder político esteja. Mas quantos mais estejam à mesa, quanto mais fito de mediação e intermediação entre partes possa haver, até de partes independentes entre o município e a comunidade, melhor a coisa funcionará, porque acabas por ser um bocado o mensageiro. Consegues, ao fim e ao cabo, mobilizar e sensibilizar as diferentes partes, porque estás a mediar uma negociação. E essa parte é mágica. Para um urbanista, essa é das coisas mais bonitas que podes fazer.

Fala-se muito da participação dos cidadãos. Ao mesmo tempo, as redes sociais têm uma preponderância muito grande na sociedade. Não há aqui, por vezes, um atrito muito grande em relação ao processo de tomada de decisão sobre um problema concreto num bairro? É que se todos começam a dar as suas opiniões…

É daí que o processo tem que ser estruturado. A informalidade tem sido uma das minhas marcas de actuação…

Há muita gente a fazer barulho. Isso não causa entropia?

Causa…(risos)… Mas a entropia é uma coisa má? Às vezes, é bom termos alguma entropia, com um choquezinho antes de pensarmos. Agora, quando a entropia se sobrepõe a tudo o resto, aí sim entramos no caos e na anarquia e isso não é bom. Por isso é que os processos de participação têm de ser aprofundados, têm de ser estruturados e terem continuidade, que é uma das questões que é bastante crítica num processo de engajamento comunitário. Os processos não podem morrer a meio, se não há uma quebra de confiança.

E isso tem acontecido em Lisboa?

Parcialmente, em alguns casos, sim. Quando tens organizações que estão a trabalhar e, depois, não têm financiamento para continuar trabalhos que são altamente impactantes, meritórios e estão a construir um fito relacional com as comunidades em que se inserem, isto quebra a confiança.

Há subfinanciamento nesta área?

Há subfinanciamento, sim. Vamos olhar para aquilo que têm sido as fatias do orçamento municipal, nos últimos anos. Estamos a falar de uma câmara que tem cerca de mil milhões de euros de orçamento anual. Um milhão e qualquer coisa para o BIP/ZIP, parece-me a mim que é escasso. Estamos a falar de um terço dos habitantes da cidade de Lisboa, são cerca de 150 mil pessoas que estão em território BIP/ZIP, num universo de 500 mil pessoas no universo da cidade. Uma mancha territorial de 67 bairros, dois quilómetros e meio quadrados. Um milhão de euros em mil parece-me manifestamente escasso.

Ainda para mais com o efeito multiplicador que este instrumento tem demonstrado…

Ora, nem mais! E agora numa lógica quase de merceeiro, bastava duplicar o financiamento e tenho o dobro dos projectos em acção, concertando-se todos entre si e relacionando-se também com outras operações em curso, a cidade ganharia um novo “boost” tremendo. Se eu fosse presidente de câmara, se estivesse no lugar do Fernando Medina ou no lugar do Carlos Moedas, neste momento…quereria saber o que é que foi feito com aquela cesta de ovos. Estamos a falar de uma omelete gigantesca.

É vital que hajam pessoas que, localmente, assumam a liderança?

Claro! Os líderes comunitários são fundamentais nisto, assumem um papel fundamental, porque são eles quem vai identificar as pessoas, são os primeiros sinalizadores dentro do território, sejam pessoas, problemáticas e até possíveis soluções. São eles quem trazem as pessoas todas agarradas. Adorava que na escola esta questão da liderança comunitária fosse fomentada.

Falando novamente do financiamento. De facto, um milhão do orçamento municipal para isto, tendo em conta o impacto que tem, parece muito pouco. Qual a leitura que fazes disto?

A culpa é vossa, dos jornalistas! (risos). A liberdade de expressão é, quanto a mim, o pilar basilar de qualquer democracia. É a partir da comunicação e da disseminação de ideias que se gera sentido. E quando tu tens uma sociedade que está doutrinada para reality shows, futebol e para tudo e mais um par de botas, menos o que é mais importante, que não tem uma lente focada para estas questões, é normal que o assunto caia no esquecimento. Não quero com isto dizer que agora, de repente, a malta tenha de deixar de ir à bola…

Achas que há uma dessensibilização da sociedade em relação à pobreza?

Em relação à participação. Porque depois há outra questão, que é a de se associar a participação à pobreza. E esse, sim, é um problema que nós temos.

Achas que é um estigma?

Acho, sim. Porque gostava de ter linhas de apoio a iniciativas também em territórios abastados. Conheces o BIP/ZIP por ser para zonas de intervenção prioritária. Então, e o “negativo” do BIP/ZIP também não podia ser trabalhado sob a égide da democracia participativa, com o envolvimento dos cidadãos, das empresas, das associações, naquilo que é o co-desenho e co-criação de soluções para a cidade? Então, se eu não morar em território BIP/ZIP também não tenho direito? Claro que tenho.

Mas quem decide o BIP/ZIP é o poder político.

É o poder político a partir de um conjunto de estudos que faz. Surge a partir da conjugação de indicadores sócio-urbanísticos, ambientais e económicos. E aí foi-se às franjas mais fragilizadas. São as mais pobres, naturalmente. No entanto, o exercício da democracia participativa não se pode esgotar só nesses territórios. Porque a ideia é integrar estes territórios na sua malha urbana envolvente. E não é só de um ponto de vista físico, é também de um ponto de vista social.

Para não perpetuar a estigmatização.

Claro, claro. Nem mais. Se ficares com um ultra-enfoque nestes territórios, acabas também por te cingir às sua fronteiras. É de louvar o trabalho dos funcionários camarários que trabalham no BIP/ZIP, isto são pessoas que dão o seu couro e o seu canastro para estarem ali. Quando a malta me diz mal dos funcionários públicos, digo sempre que é melhor ter calma e não generalizar, porque conheço heróis e heroínas que trabalham lá dentro. Tem de haver um sinal efectivamente da classe política, do poder executivo, daqueles que são eleitos, para poder extravasar os programas para além das fronteiras das manchas territoriais onde se inserem, para ter este efeito de contaminação positiva, de participação, de activação, da promoção de boa vizinhança, da promoção de soluções inovadoras.

Isso acontece muito?

Sem dúvida. Desde a criação de marca, a transformação de espaço público, o apoio às organizações para se formarem, a jornais comunitários, marcas de design, marcas de roupa, acompanhamento sénior, inovação social…Querem unicórnios? Vão ao BIP/ZIP! Das ideias que estão em BIP/ZIP, muitas delas poderiam facilmente ser enquadradas em programas de start-ups e da economia da inovação, porque há muitas ideias que têm potencial para dar esse salto.

E tiveram uma acção transformadora nesses territórios…

Naturalmente. É na capitalização de todas estas iniciativas que, julgo, poderiam assentar vectores de desenvolvimento para a cidade que fossem transversais a todas as áreas. Portanto, um milhão de euros para o BIP/ZIP é escasso. É pouco, queremos mais, temos que ter mais. Enquanto contribuinte, enquanto cidadão, quero ter BIP/ZIPs por todo o país. Porque isto tem impacto. Mas é claro que isto não é só meter mais dinheiro. Também há aqui um conjunto de coisas. Mais dinheiro, sim, mas também mais formação, mais estruturação nos processos, mais acompanhamento, mais monitorização. E mais transparência, prestação de contas. Escrutínio.

Quais serão os maiores desafios em programas deste género, em Lisboa, nos próximos anos?

Uma das questões que está em cima da mesa é a da gentrificação. Muitas das comunidades estão a ressentir-se porque somos todos humanos. Todos criamos laços emocionais uns com os outros e, quando vês vizinhos a irem embora, as pessoas ficam tristes. Portanto, há uma quebra do espírito de comunidade. Toda esta questão da especulação imobiliária tem estes efeitos muito directos sobre a vida das pessoas. E naturalmente que para fazer engajamento comunitário em comunidades que começam a ter algum receio de participar para não chamar a atenção sobre o seu território, são questões que até para nós, enquanto actores…Devo estar a qualificar? Devo estar a chamar a atenção? Porque há sítios em Lisboa por descobrir que são – como diria aqui um professor da faculdade – autênticos filet mignons territoriais. É como quando descobres uma praia brutal e não a queres partilhar com mais ninguém. Isso é um problema.

Também vejo como um problema aquelas grandes operações urbanísticas que não têm em consideração o fito comunitário e as ferramentas de participação, para poder mediar estas relações e estas tensões. Também é preciso dizer que não acredito numa cidade completamente estanque do ponto de vista do investimento externo. É necessário. O turismo é necessário. O investimento privado é fundamental numa sociedade de direito, porque me dá a liberdade de poder transformar, não fico cativo da máquina do Estado. Cria riqueza e gera debate.

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