“Somos uma referência no trabalho com as comunidades migrantes”

14 de Dezembro, 2022
Quase a comemorar 15 anos e quando passa uma década sobre a inauguração da sua sede e casa comunitária, a Associação Renovar a Mouraria (ARM) depara-se com desafios diferentes dos que a originaram. O bairro mudou muito. Elemento central no processo da sua reabilitação, o colectivo tem hoje a actividade centrada no apoio aos imigrantes. Uma parte dos quais até poderia ser mais aberta para com o resto da comunidade, admite Filipa Bolotinha, coordenadora geral da ARM. Mas a grande preocupação é mesmo a falta habitação a preços acessíveis. “As coisas estão a atingir um ponto que é completamente insustentável”, diz.

Entrevista

Samuel Alemão

Artéria: A Associação Renovar a Mouraria (ARM) vai comemorar 15 anos em Março e a Mouradia, a vossa sede e casa-bastião, está festejar agora dez anos. Nesta década, muita coisa mudou…

Filipa Bolotinha: Sim, nesta década, muita coisa mudou…Começámos há 15 anos, com um cariz completamente diferente daquele que temos hoje. Era muito como uma associação…até mais de…não diria de moradores, mas de base cultural, muito com o objectivo de abrir o bairro da Mouraria à cidade de Lisboa. Na altura, era um sítio completamente estigmatizado, tido como perigoso. Apostávamos muito em iniciativas culturais no espaço público, trazer a música e a alegria e a vida para o bairro, sempre com este objectivo de melhorar as condições de vida de quem cá vivia, porque era um bairro muito marcado pela pobreza.

Uma estigmatização…

Sim, todo um cocktail de problemas sociais e discriminações que daí seguem. Também, já na altura, era um bairro de migrantes. No fundo, ao longo destes dez anos, acabou por acontecer um movimento positivo. Efectivamente, a qualidade de vida no bairro ter melhorado, primeiro por via da requalificação do espaço público, através do plano de intervenção da CML. Mas depois também porque isso foi acompanhado pelo Plano de Desenvolvimento Comunitário da Mouraria, feito com as organizações locais e com as pessoas. Houve, de facto, uma série de respostas sociais e dinâmicas culturais que foram criadas aqui. O que trouxe alguma vida nova ao bairro, alguns novos habitantes, maioritariamente jovens, claro, muito pessoal mais ligado às artes e tudo isso. Passou a ser mais seguro andar nas ruas da Mouraria.

Podemos dizer que um dos vossos objectivos, que era do devolver a dignidade ao bairro, foi conseguido?

Sim, sem dúvida. O problema é que depois parece que o feitiço se vira contra o feiticeiro. Isso também já aconteceu ali no Intendente. O território, também por via da acção destas organizações que aqui trabalham e de todas as dinâmicas que se criam, passa a ser mais apetecível. E isso também contribui para que depois venha finalmente a iniciativa privada, reabilite os prédios para usos turísticos e luxo, médio-luxo. Que é o que acontece aqui. Houve um movimento positivo, chegámos a esse momento em que parecia, realmente, que o bairro tinha mudado e estávamos a construir uma nova comunidade, com pessoas que vinham de fora, mas que queriam viver aqui e interagir com quem também cá vivia, um bairro cheio. Depois, começámos num processo, fruto desse sucesso, por via também da estratégia da cidade – a aposta massiva no turismo e toda a estratégia nacional para o imobiliário -, em que parece que temos outra vez um bairro vazio.

Sentem isso?

Sentimos. Há aqui duas realidades muito distintas. Uma é a questão da comunidade migrante, que se situa fundamentalmente na Rua do Benformoso, e que se tem mantido. Aí, a realidade não mudou muito em termos de vida, se bem que eu ache que a Rua do Benformoso já foi mais diversa culturalmente. Havia uma maior mistura entre as pessoas da cidade que começaram a frequentar aqueles espaços e todas as pessoas que por lá viviam.

Estamos a assistir à criação de um gueto?

Não diria…tanto. Não diria com essa força, que é um gueto, porque, de facto, não se perdeu essa ligação e eu acho que em determinados grupos de habitantes da cidade…eu tenho alguma dificuldade em perceber isto, porque, se calhar, se perguntarmos a um lisboeta comum, que vive em Benfica e trabalha em Telheiras, é impensável para ele ir à Rua do Benformoso, como há 15 anos. Mas com este grupo tendencialmente de pessoas mais jovens, onde estão os estudantes universitários, estrangeiros europeus que também escolhem a nossa cidade para viver, essa ligação existe.

Mas nota-se mais essa concentração de pessoas apenas da comunidade principalmente do Bangladesh. Isto porquê? O que acho que aconteceu ali e mantém o território mais livre da dita gentrificação e turistificação é que, como é um bairro de implantação principalmente da comunidade do Bangladesh, que está cá há muitos anos, os migrantes que vieram mais cedo conseguiram construir percursos de vida com algum sucesso. Há muito investimento da própria comunidade ali. Há prédios que já são de pessoas do Bangladesh, as lojas também. Todo aquele bairro começou-se a organizar para responder às necessidades das pessoas do Bangladesh.

Mas fechou-se sobre si mesmo?

Um pouco, sim. E, se passarmos lá hoje, vemos que as lojas são todas muito iguais. Há restaurantes, há agências de viagens e pouco mais.

Podemos dizer que é um bairro monotemático…

Sim, diria que sim. Seguramente, mais do que há dez anos, onde havia ainda muita coexistência entre algum comércio tradicional e depois pequenas lojas de migrantes, que foram abrindo, mas mais diversos. Ainda havia muito daquele comércio tradicional português, muito aqueles grossistas e retalhistas, que foi dinamizado por imigrantes que vieram de Moçambique e que tinham vindo de Goa. E era uma zona tradicionalmente de comércio e agora assistimos a essa estandardização do tipo de negócios que existem ali, que são mercearias halal, talhos halal…

A que é que se deve essa dinâmica?

Deve-se ao próprio crescimento da comunidade do Bangladesh em Lisboa. Conseguiram assegurar aquele espaço físico, muitas vezes por via de terem adquirido algum do edificado. E, portanto, conseguem construir ali a sua estrutura.

Mas de uma forma desregrada, não? Há um preconceito, muitas vezes até a nível da comunicação social, de as notícias que vêm dali são de uma rua onde vivem uns milhares de pessoas, muito acima da capacidade declarada…

Sim, sem dúvida. Até quando aconteceu algo semelhante no Alentejo, houve vários jornalistas aqui a tentar perceber se na Rua do Benformoso se assistia a um fenómeno idêntico. Acho que não é da mesma escala, principalmente no que toca à questão do trabalho e de redes que tragam as pessoas para trabalhar em condições que não respeitam os direitos humanos, mas há muito essa sobrelotação dos espaços, o arrendamento de quartos e camas. Essas dinâmicas existem, seguramente. Nós trabalhamos muito com uma organização do Bangladesh, eles dão um apoio muito grande, já deram durante o covid.

Portanto, percebe-se que há também uma resposta e alguma preocupação em cuidar da comunidade. O percurso da imigração do Bangladesh…Não há dados específicos sobre isso. Fizemos uma análise situacional há dois anos, que é sobre o bem-estar dos imigrantes, mas nunca dá para fazer um diagnóstico, porque seleccionámos a amostra em termos de quantas pessoas de cada nacionalidade. Há muito poucos dados e vai voltar a não haver com este Census. Tivemos situações em que as pessoas queriam preencher os questionários, mas quando iam preencher com as moradas que eles davam, já estava preenchido. O dono da casa já tinha dado as informações que quis dar. Vamos voltar a não ter dados estatísticos que retratem efectivamente qual é a realidade específica da comunidade do Bangladesh em Lisboa.

O percurso inicial deles era muito o de Lisboa ser um sítio de passagem, com o grande objectivo de irem para Inglaterra, principalmente. Mas houve muita gente que, nesse percurso, acabou por se instalar, mas, se calhar, com a chegada do Brexit, a gente assiste a um aumento do número de pessoas. Todos aqueles negócios surgem, porque aquelas necessidades existem. Os restaurantes trabalham com aquele sistema de avença, em que pagas cento e tal euros e podes ir tomar pequeno-almoço, almoço e jantar. Por serem homens sozinhos, não terem onde cozinhar em casa. E agora há variadíssimos que fazem isso. A questão é essa, os negócios desenvolvem-se de acordo com as necessidades que a própria comunidade também tem. Há uma dinâmica própria.

Mas persiste a tal ideia de que acaba por ser uma comunidade dentro da comunidade da Mouraria…

Sim…Quer dizer, a Mouraria sempre teve essas duas realidades. A enorme concentração de imigrantes, hoje principalmente na Rua do Benformoso, porque há dez anos havia também muitos migrantes que viviam no bairro, por as casas serem baratas e tudo isso. E eles, tal como alguns portugueses, tiveram que sair devido ao aumento das rendas. Essa divisão acentuou-se um bocadinho mais, entre aquilo que é a presença migrante, em termos de habitação, muito focada no Benformoso e no Martim Moniz. Toda a frequência e diversidade do bairro mantêm-se. Isso é um facto. Mas, se calhar, adensou-se mais essa separação entre aquilo que é a comunidade bairrista portuguesa típica da Mouraria, porque geograficamente houve uma maior separação entre essas duas comunidades.

Mas a verdade, e nós assistimos a isso, informalmente há relações entre as pessoas. O português típico do bairro acaba aqui por ter contacto com outras realidades e trocas culturais que não teria, se vivesse noutro sítio. Se perguntares à senhora da peixaria que ainda existe, vais ficar a saber que os principais clientes são os restaurantes chineses. Existe uma relação, seguramente. As pessoas da Mouraria vão cortar o cabelo a todos estes cabeleireiros que são super-baratos de pessoal do Nepal, da Índia e do Bangladesh. E provavelmente até vão aos talhos. Existem essas trocas, não são duas realidades completamente separadas. Mas o que sinto é que pode haver a tendência para…

Mas a acção da Renovar a Mouraria até tem sido no sentido de fomentar a relação de integração e multicularidade. Todo o vosso discurso e o vosso programa, desde o início, têm sido nesse sentido.

Tem sido esse, sim. O que temos mudado desde o início em termos de acção foi o ímpeto através da cultura, de juntar as pessoas, de promover as diferentes culturas que existiam aqui, dar visibilidade ao bairro, colocá-lo no mapa da cidade, reivindicar coisas que achávamos que o bairro e as pessoas que cá vivem mereciam e necessitavam. E depois quando tu começas…Tivemos a oportunidade de ficar com este espaço, uma casa que desde o início chamávamos uma casa comunitária, mas que talvez hoje esteja sim a fazer efectivamente essa função de casa comunitária, mais do que nunca. Durante muito tempo, tivemos o bar e os concertos, trouxemos muita gente da cidade, mas não tanto as pessoas do bairro, para aqueles momentos específicos. Abandonámos isso, porque o sucesso desse bar acabava por abafar o resto do trabalho que nós queríamos fazer. Foi por isso que também decidimos fechar…

Foi essa a razão?

Sim, foi. Era muito difícil de gerir, porque o objectivo inicial era que o bar fosse uma fonte de receitas para desenvolver o trabalho comunitário. Mas, às tantas, para que o bar desse alguma receita para o trabalho comunitário, era preciso investir tanto recurso no bar, que, de repente, fizemos as contas e pensámos ‘se isto deixar de estar no nosso orçamento, só precisamos e angariar 20 mil euros num ano para co-financiar os projectos que já temos’. E assim poder trabalhar muito mais nos projectos e termos um outro espaço, que pode ter outra dinâmica. Fechámos em 2018 e depois ainda tivemos ali a funcionar a loja da Mouraria Composta. Mas nunca tivemos a capacidade financeira de dinamizar aquele conceito. E o que foi engraçado é que até apareceu a Cooperativa Rizoma, fazendo o que gostávamos ter feito e nós emprestámos-lhes o espaço, durante um ano, para a sua experiência-piloto. Agora, autonomizaram-se, mas foi mesmo uma parceria super-interessante.

Mas ainda em relação ao trabalho com as comunidades migrantes…

Quando começámos a ir para o terreno e a fazer as visitas guiadas e cantadas e as rondas das tascas, e depois até surgiu o programa de desenvolvimento comunitário, tomámos consciência de que podemos fazer mais. Podes, efectivamente, resolver acções e serviços que são necessidades que estão identificadas. E foi esse caminho que quisemos começar a fazer, porque, até aí, éramos todos voluntários. Era um grupo de pessoas amigas voluntárias, que faziam isto depois dos seus trabalhos. Depois, eu e a Inês Valsinha, por termos essa possibilidade, estivemos dois anos como voluntárias a tempo inteiro, para poder construir as bases de uma intervenção mais sistematizada, para criar maiores impactos. E é esse caminho que temos feito até aqui.

Desde logo, começámos com os cursos de português, com o gabinete jurídico – que primeiro foi também através de um voluntário – e com o apoio ao estudo. Foram essas respostas que fomos construindo e tornando-nos mais competentes do ponto de vista técnico. Portanto, grande parte do nossos projectos destinam-se ao público migrante. O que tentamos é que nunca seja em exclusivo. Por exemplo, temos apoio ao estudo para todos os meninos da Mouraria. Temos encontros comunitários, precisamente, para juntar pessoas migrantes e não migrantes.

Não achas que o facto de a cafetaria ter fechado, de alguma forma, tirou um foco sobre a Mouraria, que era mais aberta ao exterior?

Acho que sim. Começámos com a cultura, com o arraial, era por isso que as pessoas nos conheciam. A cafetaria tinha uma programação cultural diária.

Que atraía pessoas que, noutras circunstâncias, não viriam à Mouraria…

Sem dúvida. Foi muito importante para, com outros projectos, trazer pessoas à Mouraria, dar a conhecer o bairro à cidade, para o abrir. E foi, muitas vezes, porque nós conseguíamos também dinamizar momentos mais populares, como o magusto, o Santo António ou o Halloween. O objectivo era que as pessoas de fora do bairro que frequentavam a cafetaria convivessem com as pessoas do bairro. Sentíamos muito que era um tipo de público que queria isso, que não queria nada ser um gentrificador. Queria fazer parte, queria conhecer, queria respeitar a cultura…

A cidade também estava a mudar muito rapidamente…

Sim, claro. Começámos a programação cultural à tarde, para tentar evitar os problemas relacionados com o ruído e a vida nocturna. Ajudámos muitos músicos locais, que estavam em início de carreira. Isso também era nossa missão. A cafetaria foi muito importante para isso. É um marco na cultura da cidade e abriu o bairro e pôs também a Renovar a Mouraria nesse mapa da cidade. Mas o caminho que tivemos que fazer desde que fechámos foi um caminho de dar a conhecer o nosso “outro” trabalho. Que também toca na cultura muitas vezes. Quando fechámos a cafetaria, muita gente achou que a Renovar tinha fechado. Depois, veio o covid e deixámos de fazer o arraial.

Hoje, acho que somos, ao nível da cidade, uma entidade de referência naquilo que é o trabalho com as comunidades migrantes. Trabalhamos com todas as associações de migrantes em rede. Apesar de não sermos uma associação de migrantes, temos a noção de que temos esse reconhecimento. A verdade é que acabamos por atender muitos migrantes que não são da Mouraria. Hoje, já não trabalhamos apenas com a Mouraria nestes atendimentos directos, porque as pessoas vão-se afastando. Primeiro, vão para Arroios, depois para a Penha de França. E nós continuamos a acompanhá-las. E sentimos, após dois anos de covid, essa necessidade de voltar para a rua. De voltar a estar na Rua do Benformoso. Temos um bocado a sensação de que atendemos montes de gente. Há muita gente fora do sistema. Lidamos com situações muito mais vulneráveis do que lidávamos antes do covid. Tanto pelo covid, como pela questão da habitação.

Falaste de gentrificação. Até que ponto essas pessoas com poder de compra, que não são portugueses, são visíveis no bairro?

Também vivo no bairro, lá mais para cima, perto dessa zona que foi mais gentrificada. A zona das Olarias, do Centro de Inovação da Mouraria, todo esse quarteirão foi comprado pelo mesmo grupo imobiliário, são casas de médio-luxo. Não sentimos a presença dessas pessoas. A Mouraria, ainda assim, não tem uma situação tão dramática como Alfama, acho que a sua “menor beleza” sempre a protegeu um bocadinho. Sem dúvida. Isso é interessante. A Rua do Benformoso está super-autoprotegida, ninguém vai comprar ali um prédio a cair como investimento, porque ninguém vai querer ir viver para lá. Isso sempre foi uma dinâmica que sempre protegeu um bocadinho a Mouraria. Não está virada para o rio, as ruas são menos bonitas à primeira vista, mais sombrias. E depois, enquanto em Alfama já tinhas tido um total processo de reabilitação, já tinham ido para lá casais jovens viver, para casas que já recuperadas.

E depois foi uma segunda ronda de comprar e aproveitar para o turismo. Mas o bairro já estava reabilitado. E as pessoas acabaram por sair, porque foram expulsas, algumas, mas muitas das que compraram casa quiseram sair por não querer viver num bairro com aquelas características, cheio de turistas por todo o lado.

Aqui na Mouraria, temos o drama do Airbnb, sem dúvida, mas também porque o bairro estava muito vazio mesmo. Há 15 anos, o bairro da Mouraria precisava desesperadamente de novos habitantes. Estava muito esvaziado. Começou a haver esse movimento, com pouco investimento público, de renovação do espaço público da Mouraria. Isso coincidiu com a crise financeira de então. O plano da CML sempre foi tornar bonito para vir a iniciativa privada. Mas isso não aconteceu logo, porque foi a altura da grande crise e a construção ainda não se tinha direccionado para o centro histórico. E foi isso que permitiu criar essa Mouraria super-interessante, com gente jovem, uma nova comunidade.

Aquela ideia de laboratório social. De um ensaio de um futuro possível.

Era, exactamente. Pessoalmente, tenho imensa mágoa, porque se podia ter conseguido. Ainda que houvesse algum investimento para turismo, algum investimento para mais luxo. Com equilíbrio, e se a câmara tivesse tido uma estratégia mais de acupunctura, de pensar neste território, com tudo o que investiu aqui primeiro, que foi um excelente trabalho e único na cidade…depois, a venda dos prédios…Poderia ter havido uma arbitragem e tinha-se conseguido aqui, efectivamente, ter um equilíbrio num bairro que tinha algum turismo. Que seria positivo, se assim fosse. Algumas pessoas de uma classe mais alta a viver. Mas isso, depois, não aconteceu. Depois, mesmo aqui na Mouraria, onde havia tanta casa vazia, houve pessoas que tiveram que sair das suas casas. Mas não foi tão dramático como em Alfama.

Ainda assim, é inegável que a intervenção que foi feita na Mouraria é vista como exemplo a seguir, até para o resto da cidade. Recorrentemente, falava-se que outras “novas Mourarias” estariam na calha. Vocês são vistos como modelo de como ajudar a resgatar uma zona decadente e dar-lhe vida…

Sim, fizemos isso em parceria com outras entidades. Surgiu a Cozinha Popular da Mouraria, o GABIP (Gabinete de Apoio aos Bairro de Intervenção Prioritária) instalou-se aqui. Coincide, sem dúvida, com o início do programa BIP/ZIP, que pôs as pessoas a trabalharem em conjunto. Digo sempre isto, porque é verdade. Até existir o BIP/ZIP, as organizações não sabiam o que era trabalhar em parceria. E hoje em dia ninguém parte para um projecto sem pensar bem “com quem é que temos de falar, quem é que podemos trazer para aqui?”. Tudo isso coexistiu num espaço. Houve investimento da câmara no espaço público, abriu o programa BIP/ZIP, houve orçamento participativo, que deu o Plano de Desenvolvimento Comunitário. E havia uma série de movimentos que se tinha reunido por aqui com esta vontade. E tudo isto, de facto, tornou possível que se tenha feito o que se fez e que seja até hoje um “case study“.

A verdade é que, de alguma forma, este território não foi gentrificado a um ponto de já não viver cá ninguém, de não se conseguir fazer aqui o que se fazia há dez anos. Ainda consegues ir comer ao mesmo restaurante, ao Trigueirinho. Mesmo assim, acho que houve alguma resiliência a esse processo. Tenho muito a sensação de que o próprio turismo…Uma pessoa fica num Airbnb na Mouraria e o que faz é sair de casa e ir para a Baixa. Não abriram aqui assim tantos “trendy bars“. Muitas vezes, interrogo-me “então, ninguém descobre o bonito que é este bairro?”. Mas para o postal turístico, de facto, Alfama é muito mais bonita. A autenticidade, o ADN do bairro, a gente continua a ouvir fado que vem de dentro das casas. Os habitantes daqui vibram com isso.

Não é uma coisa fake

Exactamente. Agora, os novo habitantes são muito invisíveis. Sinto um bairro mais esvaziado agora do que há seis anos. Porque as casas são de alojamento temporário. Há muito mais casas livres, mas acho que há menos gente a viver aqui todos os dias e a fazer parte desta comunidade. Porque os novos habitantes, até de uma classe mais alta, se vivessem no bairro e nós conseguíssemos envolvê-los na vida comunitária do bairro, seria perfeito.

Mas o espírito comunitário perdeu-se?

Não, acho que não. Acho que as dinâmicas comunitárias que existem na Mouraria também são elas muito orgânicas, no sentido em que há dinâmicas dentro da comunidade migrante, há dinâmicas dentro da comunidade dita mais típica da comunidade da Mouraria, onde há muita entreajuda entre vizinhos, tudo isso continua a existir. Isso mantém-se. Há esta espontânea e não oficial relação entre todos. Se for preciso as pessoas juntarem-se para defenderem alguma coisa da Mouraria, isso ainda está lá, isso ainda existe. Isso viu-se um pouco com a questão do que fazer com o Martim Moniz. Estavam ali todos estes sectores, quando se falou disso.

Quais são as tuas expectativas em relação ao jardim do Martim Moniz?

Tenho algum receio. Estou quase certa de que aquilo vai ser um jardim. A questão é: que jardim? Quanto tempo?

Fala-se num jardim multicultural. É uma expressão muito vaga, não é?

Sim. Até ser um jardim… O Jardim do Caracol da Penha, que ganhou o OP2016, vai abrir agora. Até ser um jardim, o que vai acontecer aquela praça? O que é que vai ser permitido fazer lá? Do ponto de vista mais formal, tenho algum receio. Foi aberto um concurso internacional, efectivamente, mas, pelo que sei, é muito vago. Portanto, há um risco de vir uma proposta que não é exequível. Há muitos riscos de isto parar e não acontecer nada. Acho que o executivo camarário teve vontade de fazer um processo participativo, acho que deu o seu melhor. Não vou dizer que foi perfeito, mas dentro daquilo que são processos participativos, houve gente muito interessada em fazer. Houve boas intenções, mas tenho esse receio, de que não se desenvolva. Não por falta de vontade política, mas por burocracias.


E preocupa-me o que é que aquele espaço vai ser, entretanto, porque depois está em processo de degradação e não é usado. Isso só ajuda a criar estigmas, é mais uma barreira. Acaba por tapar o bairro, dá logo uma imagem de ser uma “zona esquisita”, embora não se passe ali nada de esquisito. Não se passa ali nada de perigoso, de violento. A demora pode é criar anti-corpos contra o projecto. Quanto mais tempo aquela praça estiver inoperacional, com o que as pessoas consideram maus usos, mais difícil será receber ali um jardim e mudar toda a dinâmica.

Quais achas que serão os principais desafios do bairro e desta zona central da cidade nos próximos anos?

O principal desafio do bairro e de toda a cidade é a habitação. Que é um problema. Neste momento, sinto-me mesmo…De facto, as coisas estão a atingir um ponto que é completamente insustentável. Só aqui tenho três ou quatro colegas que têm que sair de casa nos próximos dois meses. Pessoas que moram aqui nas redondezas. Não há casas a arrendar. Esse é o grande desafio e nós próprios sentimo-nos de pés e mãos atados. Como é que nós podemos? Fizemos parte do Morar em Lisboa. Foi criada alguma legislação tardia, fruto de movimentos civis, mas…O que acho é que temos de fazer uma reflexão e perceber o que raio é que a sociedade civil pode fazer para mitigar este problema. Porque é uma dificuldade imensa.

Depois, desafios concretos do território, há um grande desafio no qual estamos empenhados, que tem que ver com a sustentabilidade ambiental. Localmente, do nosso ponto de vista, o grande objectivo é tornar a Mouraria um bairro sustentável do ponto de vista ambiental, que, ao mesmo tempo, contribui para a qualidade de vida de todas as pessoas que vivem aqui. Quando falamos de compostagem e de pequenas hortas, até pode servir com algum suporte financeiro, na medida em que pode cultivar alguns alimentos. Achamos que também é uma ferramenta que pode ser muito importante para criar comunidade. Para juntar as pessoas em torno deste objectivo, porque todas elas têm culturas a esse nível diferente. Todas elas podem trazer produções diferentes, conhecimentos da terra diferentes, seja portugueses, bangladeshis, do Nepal ou paquistaneses.

Para nós, isso é um desafio e estamos muito empenhados, porque também achamos que pode ser essa ferramenta de juntar as pessoas à volta desse objectivo. Para além da habitação, que já referi, a imigração também é um problema. Está-se a criar situações de enorme vulnerabilidade. Há migrantes que, praticamente, são os novos escravos do século XXI. E depois há todas as tendências de extrema-direita que isso alimenta. Esse é um desafio que não é da Mouraria, é do mundo inteiro. Reflectimos muito sobre isso. Acreditamos num mundo sem fronteiras, sim, mas não vale a pena abrir as fronteiras para que as pessoas estejam a viver em condições sub-humanas de sem-abrigo. A solução para este fluxos não é fechar as fronteiras, de todo, mas é criar as condições para receber estas pessoas que querem viver no nosso país.

Tendo em conta todos esses desafios, como vês a Mouraria e o centro da cidade dentro de 10 ou 15 anos?

É um outo ciclo. Acho que ainda há esperança, ainda é possível…O problema mais complicado é o da habitação, mas acho que pode mudar um pouco, se efectivamente todos estes programas que têm sido anunciados se concretizarem. Vai fazer diferença. Havendo esse aumento da oferta para a classe média. Se isso acontecer, acho que conseguiremos manter este desenho social que tivemos até agora. Quero acreditar que conseguimos dar alguns passos no caminho da sustentabilidade, no caminho da melhoria das condições de vida das comunidades migrantes, na melhoria do seu acesso ao ensino. Se tudo isso se concretizar, consigo imaginar a Mouraria como esse bairro que, de alguma forma, sobreviveu e está um bocadinho mais sustentável. E conseguiu criar melhores condições de vida, principalmente para as comunidades migrantes que aqui vivem, que conseguiu inclui-las na sua vida, conseguiu dar-lhes ferramentas para serem autónomos no processo de vida em Lisboa.

Achas que a associação será tão relevante quanto é agora?

Adorava que não fosse preciso haver esta associação. Era sinal de que muitos dos problemas estavam resolvidos. Neste momento, fazemos mesmo trabalho de terreno, de ajudar pessoas a resolver problemas graves. Era um óptimo sinal se não existíssemos. Mas acho que será sempre relevante, como um desses pilares. Era óptimo que, daqui a 15 anos, fôssemos apenas um espaço aberto. E isso é algo que temos em mente e gostaríamos de transformar o espaço de lá de baixo um bocadinho nisso. Um espaço em que a comunidade se sentisse autónoma e capacitada para programar, para fazer acontecer. Era óptimo que, daqui a 15 anos, fôssemos só isso, um espaço aberto a toda a gente e que acontecessem muitas coisas dentro, com as próprias pessoas a dinamizarem e não nós a dizer o que fazer.

Quiçá com uma nova cafetaria….

Quiçá com uma nova cafetaria. Também já pensámos nisso. Pensámos em reabrir num formato mais ligeiro, menos ambicioso em termos do que oferece. Algumas bebidas, alguma programação mais ligeira, porque nós também começámos a ter algum problema com o barulho, embora as coisas acontecessem cedo. Não queremos ser esse elemento que cria esse distúrbio. Mas gostaríamos que até fosse uma cafetaria mais inclusiva, em que cada dia estivesse a atender uma pessoa que até já foi ao nosso atendimento. Um ponto de encontro, temos essa visão. O nosso objectivo era esse para daqui a 15 anos, e não andar a substituir o Estado no seu trabalho, que, no fim do dia, é o que a gente faz. Se isso acontecesse, era muito bom sinal. Mas não acredito que vá chegar a esse ponto (risos)…Julgo que seremos relevantes e necessários, ainda, infelizmente.

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