Reportagem

Adão Conde

A arte de encurtar distâncias

4 de Julho, 2023

Adão Conde, artista, ilustrador e colaborador habitual do Artéria, dá conta (na primeira pessoa) do projecto solidário que levou a cabo no Bairro do Casalinho da Ajuda. A arte e o desenho como forma de encurtar distâncias.

Tudo começou no final do ano passado, quando fui convidado para fazer uma exposição na Biblioteca de Belém, ali na Rua da Junqueira, mesmo ao lado do recém-inaugurado Quake Museum, um centro dedicado ao terramoto de 1755. 

Desconhecia o espaço, apesar de aqui ter passado tantas vezes a bordo do Elétrico 28 (estudava Arquitetura na Universidade Moderna), nessa Belém nos anos 90, sem filas para entrar nos Jerónimos, na Torre ou nos Pastéis de Belém, um bairro onde o novíssimo CCB contrastava com prédios devolutos e degradados. 

Foi numa das salas do segundo piso, com vista para o rio, que começámos por falar de como a informação, a literacia, a educação, a inclusão, a participação cívica e cultural deve estar no cerne dos serviços das Bibliotecas Públicas. A conversa centrou-se na forma de conquistar novos públicos, em especial de comunidades mais afastadas. E assim chegámos ao Bairro do Casalinho da Ajuda, e a uma parceria com o Projeto Ajuda2020-E8G. 

No mapa, apenas 2 mil metros separam a Rua da Junqueira do Bairro do Casalinho da Ajuda. Para quem vai de Belém para cima são cinco minutos de distância, mas para quem sai do bairro, a Junqueira pode ser muito distante, tão distante como outra cultura, outro país, outro mundo. 

Lá fomos ter à Escola Básica Homero Serpa, sede do Ajuda2020-E8G — projeto promovido pela Secretaria de Estado da Igualdade e Migrações e pelo Alto-Comissariado para as Migrações/Programa Escolhas. O Armando Ferreira, coordenador, falou-nos de um texto que havia escrito, adaptado de um conto que a sua avó alentejana lhe dizia em criança: “Os Lãzudos”. 

Eu tinha criado o ARTECEDÁRIO, um método que visa transmitir as primeiras noções do desenho através de uma cartilha de cinco elementos gráficos (Círculo, Linha, Onda, Ziguezague e Ponto) dessacralizando a habilidade de desenhar e dando aos “Artistas” as primeiras noções e confiança necessária para entender o desenho como algo que podemos praticar e desenvolver ao longo de toda a vida. 

Foi dessa união que nasceu a ideia: vamos ilustrar o conto “Os Lãzudos”, dissemos. E com as páginas ilustradas fazemos uma exposição na Biblioteca de Belém, que será inaugurada em festa, onde os Artistas do Ajuda2020-E8G serão protagonistas. Celebrar a Biblioteca, o Livro, a Arte e a Cultura, num dia gerador de boas memórias, em que todos sentem fazer parte, sem barreiras físicas, tecnológicas ou educativas. 

Adão Conde e os “artistas”

Da ideia à concretização

“Sabem o que são Lãzudos? Eu também não. Então vamos desenhá-los!” Foi assim que me introduzi a um grupo de cerca de 20 crianças e adolescentes, com idades dos seis aos 13 anos, um grupo desafiante, quer pela disparidade de idades, formações, culturas, ritmos, que têm entre si, quer pelo facto de ainda não me conhecerem. 

Com a ajuda do Armando e da Maria, monitores, começámos a trabalhar, a desenhar, a riscar folhas com círculos, linhas, ondas e ziguezagues, e foi pelo desenho que comecei a ganhar a confiança deste grupo. De desenho em desenho começámos a ganhar cumplicidade, e foi a vermos e a falarmos dos desenhos que faziam que me deram oportunidade de os conhecer e entrar nas suas vidas. 

Dois dias e eu regresso ao atelier com três dúzias de desenhos para trabalhar. Na semana seguinte, recebo uma chamada do Armando, que tinha para me entregar uma resma de folhas desenhadas, todas sobre o conto. Desde esse dia que trago em mim uma sensação de orgulho neles, de gratificação, mas também a angústia de não poder incluir todos os desenhos. Volto à sede do Ajuda2020-E8G com os desenhos transformados em ilustrações, enquadrados em páginas, com textos. 

“Uau! Parece mesmo um livro!” dizem. Ao verem os seus trabalhos paginados, noto um misto de verdadeira modéstia com orgulho. Primeiro revelam uma certa recusa em querer aceitar esta realidade, mas depois começam a apreciar os trabalhos de uns e outros. Vejo surgir uma sensação de brio, de realização pelo que fizeram pessoalmente e em grupo. 

Para mim, há mesmo uma certa vaidade em ver os desenhos expostos desta forma. Tenho a certeza que até ao final da exposição, dia 17 de Julho, vou chatear todos os meus amigos (mais do que faço em exposições minhas) para aqui virem ver as ilustrações dos “artistas”. Infelizmente, por falta de iniciativa dos parceiros, o projeto Ajuda2020-E8G acaba este mês. 

O trabalho do Armando, da Maria, de todos que se envolveram nestes últimos anos, não tem continuidade prevista. Este grupo de crianças e adolescentes vê mais uma instituição fugir-lhes, o espaço que transformaram numa segunda casa, de aprendizagens, de construção, será abandonado, tal como o trabalho que tem vindo a ser feito. As razões, dizem-me, não são razões financeiras, ou de falta de cumprimento de objetivos. 

Escrevo esta crónica na Biblioteca de Belém, no Jardim, numa das mesas do CCC café, onde podemos tomar uma bebida ou uma refeição ligeira e contribuir para a causa da Associação Corações com Coroa, presidida pela Catarina Furtado. Escrevo com um misto de orgulho e tristeza, mas com a esperança de que esta exposição crie uma relação deste grupo com a Biblioteca de Belém e reduza esta distância tão grande que vai daqui ao Casalinho da Ajuda.

Alguns dos trabalhos finais, já com a intervenção de Adão Conde; o cartaz da exposição

ARTÉRIA

O Artéria é uma iniciativa de informação comunitária lançada pelo PÚBLICO com o apoio da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. É feito por voluntários, supervisionados por um jornalista profissional.

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