Crónica

Vítor Oliveira Jorge

Manuel Amado, amante de Lisboa

14 de Setembro, 2022

“Praça do Comércio” (1989). Reprodução autorizada pela família de Manuel Amado.

A ideia que temos sobre uma cidade é estabelecida, não só a partir das representações mentais que vamos construindo pelo nosso contacto directo com ela, como ainda pela observação de fotografias e de filmes. Mas também, é claro, pelas reproduções artísticas da mesma. O pintor Manuel Amado (1938-2019) e a sua peculiar observação da luz de Lisboa – e muito em particular a sua obra “Praça do Comércio” (1989) – são evocados de forma especial pelo leitor Vítor Oliveira Jorge, em mais uma crónica plena de sensibilidade e conhecimento.

Conheci pessoalmente o pintor Manuel Amado em 2004, na sua casa de Lisboa antiga, singela por fora, magnífica por dentro, perto do Palácio das Necessidades, com a sua altiva palmeira no exterior voltado à vista deslumbrante do Tejo e, sobretudo, com as paredes interiores recamadas de pinturas do autor. O Manuel era pessoa de poucas falas, a sua pintura falava por si, claro, mas de forma tão subtilmente intensa que, sentado num sofá em frente dele, eu mal conseguia concentrar-me no que ele me dizia, tão fascinado fiquei com aquele ambiente de suspensa, envolvente beleza.

Cada imagem me apelava, porque já há muito tinha tido contacto com a sua pintura, com a sua genialidade aparentemente simples (só aparentemente, como toda a grande obra), e até me espantava, mesmo, o relativo silêncio em que este enorme artista português era mantido no espaço público, se comparado com o alarde, igualmente merecido por certo, em torno de outros “colegas” (de facto, se há algo em que Portugal é rico, é em artistas!).

Porque, afirmo e reafirmo, hoje na sequência de muitos, Manuel Amado é um dos mais importantes e originais pintores do nosso tempo, e não só de Portugal, e não só do Sul do nosso país, cuja luz especial impregna a sua pintura, mas do mundo. O Manuel começava muitos dos seus quadros em Lisboa e terminava-os num espaço de trabalho que tinha ali para Azeitão, onde dispunha de maior amplitude e silêncio para apurar as imagens, e sobretudo dessa luz propícia a que me refiro.

Se ele falava pouco, ou pelo menos falava com uma espécie de candura, de serenidade que era também a atmosfera das suas imagens, como referiu no Público Luísa Soares de Oliveira (https://www.publico.pt/2019/10/14/culturaipsilon/noticia/morreu-manuel-amado-pintor-serenidade-1889972) e que imediatamente atraía o seu interlocutor, já a mulher, Teresa, autêntica gestora da obra do mestre, era e é uma pessoa prática – infelizmente, nunca mais a vi após o falecimento do Manuel, em 2019, a que se refere a notícia citada -, extrovertida, dinâmica, a quem se deve muita da divulgação do trabalho admirável do seu marido, e a cuja iniciativa constante se deve também o Catálogo Raisonné que se pode encontrar hoje online (https://www.manuelamado.com/pt/) e para o qual remeto o(a) leitor(a).

Mas Manuel Amado está longe de ser um pintor desconhecido. Deixou uma vasta obra, expôs com frequência, existem quadros seus em muitas instituições, há abundantes catálogos onde se pode contemplar os seus trabalhos (nomeadamente o catálogo virtual, que referi), e há sobretudo textos iluminados sobre as suas imagens, nomeadamente de um comum amigo e grande poeta, Nuno Júdice (vários, por exemplo sobre a série “A grande cheia”). Falecido em Lisboa com 81 anos, Amado havia vivido a sua infância e parte da sua juventude na casa dos seus avós paternos, o palacete onde hoje está instalado o Museu de Lisboa, no Campo Grande: palacete esse que aparece metamorfoseado na sua obra, tanto no que respeita aos jardins, um dos seus temas preferidos, como aos interiores e, também, num quadro que sempre me fascinou, em que as sombras redondas das copas das árvores no chão se sucedem em fileira dirigida ao portão de fundo.

Por que razão me fascina tudo isto, que Manuel Amado recriou?… É a tentativa de objetivar esse fascínio que inspira este meu texto. A criação de um espaço irreal, diria mesmo surreal, mas utilizando “argumentos” da própria realidade mais trivial, mais aparentemente realista, reproduzida: essa “estranha familiaridade” a que se referiu Freud. Olhamos para as coisas de todos os dias, os espaços, as paisagens, os objetos, e há um pequeno desfasamento, uma ligeira rutura, ou brecha, entre a primeira impressão e a seguinte, em que nos apercebemos que Amado usa a realidade para mostrar a sua irrealidade ou o seu carácter surreal, se quisermos. A realidade tem a estrutura da ficção, como o psicanalista e pensador francês Jacques Lacan nos explicitou, e isso está presente, de forma constante, nos quadros do Manuel. E para isso ele não precisa de grandes artifícios, por exemplo da presença da figura humana de algum modo “despaisada”, solitária, como aparece em Hopper, autor a que muitos o compararam.

Mas Amado é mais perturbante do que Hopper, porque nele a figura humana está ausente. E nesses espaços de ausência (Amado era, de formação, arquiteto) bate-nos com força suave a luz e as linhas de um mundo habitável e sereno, mas com uma ligeira inquietação de fundo, como um silvo inaudível que aponta para o absurdo de viver, sem nunca se descolar de um certo júbilo: como diria Ramos Rosa, o poeta, “estou vivo e escrevo sol”.

Manuel Amado pintou com alegria suave essa luz, essa luz única de Lisboa (e seus arredores, claro, nos seus múltiplos cambiantes…), essa luz que ilumina o quadro da “sua Praça do Comércio” (Terreiro do Paço) banhada de uma presença ausente, e a qual, quando contemplo a pintura, me faz sentir ainda a mão do meu pai conduzindo-me ali, quando era pequeno, num mundo sem carros, onde tinha quase de fechar os olhos, tão forte era essa presença viva e solar das arquiteturas, daquela enorme boca de Lisboa aberta ao rio como se fosse querer engolir o mar. Amado viu como ninguém a baixa pombalina, a sua esquadria neoclássica, a magnífica porta de Portugal que ali está, que ali persiste, que, como tudo o que é grande, nunca se consegue abarcar.

Porque se já Francisco de Holanda falava em 1571 da “fábrica que falece à cidade de Lisboa”, se a nossa arquitetura portuguesa é, em geral, de pequenas proporções, isso não diminui evidentemente o seu valor: mas precisamos também de espaços grandes, de objetos de amplitude, como é por exemplo esta Praça, ou como é o Palácio-Convento de Mafra, ou de outros, não pela “mania das grandezas”, mas porque a escala é importante, proporciona diferentes tonalidades de música, de cor, de sentimentos, e, por vezes, abre o espírito para esse infinito que o mar, tema eterno de Portugal e de Lisboa, particularmente simboliza. O infinito a que nos fizemos desmedidamente em sonhos e em proezas, o infinito que se corporiza e, ao mesmo tempo, se desvanece na luz do mar, na luz de Lisboa, e se reflete nos pequenos objetos, nos mais íntimos interiores, que tão bem a obra de Amado espelhou.

O absurdo sussurrado, o surreal simplesmente aludido, o mistério da existência, a ausência subtil: acentuada, por exemplo, pelas imagens do quarto de Pessoa, de cuja janela se vê o outro lado da rua e as características casas de Lisboa do princípio do século XX, e onde a imagem da amada (Ofélia) aparece apenas num pequeno quadro pendurado numa parede: este jogo do pequeno (quarto, cidade) e do grande (Pessoa, o seu mundo poético) é tudo o que é Portugal, e não só Lisboa, um pequeno país onde ecoa qualquer coisa de distante, de entreaberto, de insatisfeito, de impossível de satisfazer. Esse mesmo absurdo, cómico, sarcástico quase, aparece nas figuras das séries alusivas ao “teatro”, como aquela a que chamou “O Espetáculo vai Começar”, e em que os contornos do corpo humano aparecem transfigurados em recortes de cenário vistos de trás, a partir dos bastidores… etc.

É impossível resumir em poucas linhas a inspiração infinda que um autor como este permite: linhas que partem das suas rigorosas geometrias (como, mais uma vez lembro, as das ruas da baixa pombalina vistas por Amado) e apontam para um além sempre incumprido, sempre inatingível: é isso Lisboa, a Lisboa que Amado amou, a Lisboa que eu, também através de Amado, sempre amarei até me fundir no mesmo azul em que ele já descansa.

O Artéria é um projecto de jornalismo comunitário. É feito por voluntários, supervisionados por um jornalista profissional.

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