Uma rememoração quase em fluxo de consciência, feita por um leitor do Artéria, sobre como era o percurso do elétrico 15 noutras épocas. Libérrimas evocações de há muito, muito tempo. Tanto que ainda se podia realizar o percurso até Algés numa carruagem de um modelo diferente, de carroçaria aberta nas laterais.
Não havia automóvel próprio pra domingos num outro tempo, mas podia sempre escolher-se o eléctrico desejado – comprido, curto, com atrelado, sem atrelado, franzino, gordo, arredondado, potente, sóbrio. Mas o aberto, ah, o aberto! Era mesmo o melhor. Com uma tripulação apenas de dois homens, percorria facilmente o mapa privado de um Portugal ainda zinho, ainda zito.
O eléctrico é amarelo, é comprido e é aberto, com toldos de praia laterais e verticalmente corridos, tem várias fiadas de bancos de madeira envernizada de cinco ou seis lugares cada um. Os dois estribos altos, ao longo de todo o comprimento, permitem mais passageiros, corajosos e despojados, que viajam em camadas sobrepostas e sucessivas, fora do espaço físico do veículo.
Permitem também que o cobrador de bilhetes (ainda mais corajoso e destemido que os passageiros) percorra – agora em pleno espaço e numa órbita exterior à última camada de excedentes – o comprimento total desta nave, em complicados e perigosos exercícios, utilizando uma mão para se agarrar aos repetitivos varões, por entre as mãos dos outros astronautas, outra mão com que saca de um misterioso cinto de utilidades com coldre, de um molho de bilhetes de vários preços e cores e ainda outra mão, munida de um artefacto alicático com que os perfura em locais pré-determinados e cabalísticos, dando-lhes uma outra importância e responsabilidade, tornando-os em documentos válidos, contratos individuais que permitem usufruir legalmente desta viagem fantástica.
A sombra de Ray Bradbury paira no entardecer ainda antes, muito antes ainda de eu o vir a conhecer, todo o conjunto tem a estética das gravuras de um livro de Júlio Verne, o eléctrico é uma espécie de ficção científica antiga, tem umas barbas poderosas à frente, chamam-se-lhes salva-vidas mas não deixarão nunca de ser umas barbas, imponentes e escuras, dão-lhe seriedade e rigor.
O melhor lugar da astronave é à frente, na primeira fiada de bancos, ali a meio emocionante metro do guarda-freio, timoneiro intrépido e audacioso, as mais das vezes a nove pontos, com o eléctrico de barbas ao vento, balançando para a esquerda e para a direita, sinal de uma velocidade próxima dos limites einsteinianos. Num movimento enérgico e súbito, o piloto puxa para a esquerda a manivela que corta o combustível e dedica a maior parte da sua arte e experiência desta navegação à outra vertical manivela à sua direita, inserida numa elegante roda de ferro cromado que contém uma pega lisa de tantos anos e mãos, rodando-a para a direita e aliviando alternadamente esse movimento, com um saber tanto maior quanto mais suave vai sendo a aterragem na próxima paragem. O seu pé direito acciona discreta e eficazmente uma genial espécie de pedal horizontal que prende a manivela de travagem, inserido que fica numa das ranhuras existentes na base, para o efeito.
A parte do sistema solar ainda conhecida fica para trás, Belém, Jerónimos e pastéis de nata diminuem de tamanho, o Tejo alarga-se e o eléctrico interna-se por ruas mais escuras e arborizadas, de novo a nove vertiginosos pontos, uma súbita mudança para uma velocidade orbital, curva, contra curva e é Algés a escorregar para o mar, que percorre majestoso, antes de nova paragem, já com poucos habitantes a bordo.
Deixa para trás o Aquário Nacional com a sua lula gigante à entrada, interna-se por rotas desconhecidas, algo sinistras, entre prédios hostis de um lado e ameias altas do outro, a velocidade aumenta de novo, há uma tensão expectante, são os limites da cidade, nesta viagem de longo curso, os limites de um mapa conhecido e explorado aproximam-se, é outra galáxia, estamos a chegar ao fim, percorrendo agora mais lentamente esses derradeiros parsecs.
Cruz Quebrada, fim da linha, as casas desaparecem de repente à esquina da cidade, subitamente é o campo e o silêncio, inventados à pressa e à beira de um rio, há por ali pescadores imóveis, à pesca de um sonho.
Para lá deste décor é o Estoril e o Santini, é o estrangeiro, com gelados de morango e marrasquino, só de combóio, um outro eléctrico internacional, mais potente e maior, com um ritmo próprio, que parece avançar em cima do mar de Caxias, a meio caminho entre o pôr do Sol e o Ocidente.
O eléctrico recolhe agora as barbas da frente, distende as barbas recolhidas da ré, vira as costas dos bancos ao contrário, as manivelas de comando são levadas para o extremo oposto da nave e finalmente o trolley, essa barbatana dorsal que lhe confere uma elegância e um sentido, muda simetricamente de posição. Sem manobras, sem se mexer do fim da linha onde permanece ainda imobilizado e digno, fica assim magicamente transformado em regresso, o avesso da aventura, ao passado e à noite, Junqueira, Rua Pinto Ferreira, trinta, rés-do-chão, o som belenense das Salésias gritado em uníssono, a perspectiva da aula da segunda classe da segunda-feira, professora e alunos a preto e branco, mãe acordas-me, propícia, o pequeno almoço, a pasta feita a tiracolo, era uma vez um carlos e um domingo.
O Artéria é um projecto de jornalismo comunitário. É feito por voluntários, supervisionados por um jornalista profissional.