Santos da Casa

Autor

Artéria
12 de Junho, 2023

Os participantes da marcha da Santa Casa não sonham vencer as Marchas Populares de Lisboa, até porque não fazem parte do concurso oficial, mas acabam sempre o desfile como vencedores. Fomos assistir a um ensaio e tentar perceber o impacto e importância que estes dias têm nas suas vidas.   

“É difícil, mas o entusiasmo é tão grande que até esquecemos as mazelas”, diz Carlos Pinto, sorriso na cara, chapéu na cabeça, durante um ensaio no Pavilhão Vale Fundão, em Marvila. Com 84 anos é o mais velho dos participantes da Marcha da Santa Casa.  

Desde 1932 que o cenário se repete. Centenas de participantes, em representação do seu bairro, descem a Avenida da Liberdade à procura do título. Dias de festa intensa (teoricamente) ao alcance de todos, a verdade é que a muitas pessoas, sobretudo as mais velhas, não lhes restava outra alternativa que não fosse assistir. 

Foi esta uma das razões que levou a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa a tomar parte directa nesta tradição. Desde de 2017 que cerca de 51 participantes — 48 pares e três mascotes, aos quais se juntam os respectivos padrinhos — participam no desfile, ainda que não contando para a classificação. 

Não se pense, contudo, que o nível de exigência é inferior. Luna Marques, diretora da Unidade de Animação Socioeducativa da SCML e responsável pela marcha contextualiza. “Fazemos um casting, as pessoas inscrevem-se e participam numa pequena coreografia, para perceber se têm jeito”.

Se o ponto comum aos participantes de outras marchas é o bairro, aqui é a instituição. Todos estes estão em serviços da Santa Casa, em equipamentos sociais. O que mais conta não é o resultado, já se sabe, mas sim o processo. “É muito intenso e quase terapêutico”, avança Luna, dando um exemplo ‘dona’ Glória. “Andava de canadianas há algum tempo, veio para a marcha e passado pouco tempo ficaram de lado”. Este ano, pela primeira vez, têm pessoas com necessidades especiais, entre eles o mais novo da marcha, Gonçalo, de 19 anos. 

Já Carlos Pinto, o veterano do grupo, está aqui desde o início. O entusiasmo é visível tanto durante os ensaios, como no intervalo. Realça a “cumplicidade, o carinho e o estímulo” por parte de todos, fazendo questão de não colocar o foco apenas em si. “É importante demonstrar que o idoso pode ser activo, que não somos uns coitadinhos”. Ele que não se fica por aqui em termos de actividades. “Ainda marco os meus golos”, dispara. “Costumamos jogar futebol todas as terças, no Estádio da Luz, junto à estátua do Eusébio. E vamos a torneios. Tenho uma carrada de medalhas em casa”, diz orgulhoso. 

Gracinda Gonçalves é 13 anos mais nova, mas também das mais antigas, presente “desde o início”. Desde o início não, corrige, “pois a primeira vez não quis ver. Meti na cabeça que não era para mim”. Arrependeu-se e desde então nunca mais falhou. “Toda a gente se conhece, somos como uma família” diz, mas sem esquecer o sentido de responsabilidade. Refere mesmo que encara os ensaios como “uma profissão”. Quase quatro meses de ensaios diários, todas as manhãs, desde Março. “É claro que todos nós nos enganámos, mas faz parte. Temos que ser responsáveis, chegar a horas, não falhar nenhum dia. E divertirmo-nos”.  

Os ensaios decorreram todas as manhãs, no Polidesportivo do Vale Fundão e no Pavilhão dos Loios, em Marvila

A importância do sorriso

O experiente Paulo Jesus é o coreógrafo de serviço, também ele presente desde 2017. E também o seu entusiasmo e cumplicidade são notórios. Puxa pelos marchantes, brinca com eles, repete e cronometra os movimentos, uma e outra vez. Após uma hora de ensaio faz uma pausa.

As pausas são fundamentais. “Na marcha de Marvila ensaiamos à noite (Paulo é igualmente coreógrafo da marcha de Marvila), e também fazemos pausas, mas é mais para o cigarro. Aqui é para descansar um pouco, às vezes tomar um comprimido ou esperar que o efeito do comprimido passe”. As pessoas são mais velhas, têm diferentes necessidades. Às vezes especiais. 

As suas preocupações enquanto coreógrafo vão por isso muito para além das regras. “As marchas têm muitas regras, ao contrário do que as pessoas pensam”, avança. Desde logo começar a coreografia com o pé esquerdo. Neste caso não interessa com que pé começam, as questões técnicas, mas sim o sorriso. Quero que haja uma ligação entre os marchantes e o público, que se sintam felizes e valorizados. Aqui são o centro das atenções. Pessoas que, tantas vezes, foram ou são ou rejeitadas no dia-a-dia”.  

Paulo revela que tem, ainda assim, o cuidado de não valorizar em demasia as suas limitações. “Se disser a esta pessoa para não fazer isto ou aquilo porque coxeia ou dar uma função específica porque porque tem alguma limitação, acabo por estar a estigmatizar, por perpetuar aquilo que tantas vezes os coloca de parte lá fora. Aqui são todos e todas iguais”, conclui. E todos vencedores.

ARTÉRIA

O Artéria é uma iniciativa de informação comunitária lançada pelo PÚBLICO com o apoio da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. É feito por voluntários, supervisionados por um jornalista profissional.

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