No Bairro Padre Cruz as campainhas tocam à hora de jantar

14 de Junho, 2022

Reportagem

Ana Narciso
A associação de moradores de um dos maiores aglomerados populacionais na zona norte da capital dá resposta às necessidades de alimentação da comunidade. Uma tarefa que assenta, sobretudo, no voluntariado.

Edmundo começou as entregas do jantar atrasado e ainda só são 17h30. A distância não é longa, mas a conversa tende a atrasar o ritmo das entregas. No Bairro Padre Cruz, em Lisboa, a cantina da associação de moradores confecciona diariamente cerca de 75 refeições, sendo 35 entregues em casa. Edmundo Rodrigues tem 61 anos, é mecânico de automóveis e, no final do dia de trabalho, é responsável pelas entregas das refeições porta a porta.

As primeiras entregas da tarde são feitas a pé, nas três casas que ficam na rua do Rio Corgo, arruamento estreito em frente à sede da associação. À espera já está Maria de Lurdes, que diz ter “48 anos ao contrário”. Dentro de casa, Edmundo Rodrigues ia colocando o saco de ráfia com o tupperware quente em cima da mesa da cozinha e procurava as caixas do dia anterior. “A saúde não está boa”, atira Maria de Lurdes. Vive sozinha e recebe as refeições por não saber cozinhar. Naquele dia, tinha um aparelho Holter colado ao peito para medir o ritmo cardíaco durante 24h.

A conversa em cada casa tem de ser curta. A comida está quente e Edmundo quer que toda a gente a coma a horas. Quando as entregas eram menos, as conversas eram maiores e chegava até a haver tempo para verificar se a medicação tinha sido toda tomada corretamente e ouvir um bocadinho do que tinha acontecido desde a entrega do dia anterior.

As refeições consistem sempre num prato principal, sopa e fruta. É uma refeição completa por 2,5€ para os sócios da associação e 3€ para os não-sócios. Naquele dia, serviu-se carapaus no forno com molho à espanhola, sopa juliana e uma laranja. Como era quinta-feira da ascensão, todos os sacos levavam um pequeno extra: um ramo de espiga para dar boa sorte para o ano.

O preço das refeições foi estudado e decidido em conjunto com a Câmara Municipal de Lisboa (CML). “O preço cobre o custo da compra dos alimentos. Não estamos à procura de lucros. É ela por ela. Há dias em que o valor da refeição não paga tudo e há dias em que sobra. Vamos equilibrando”, diz Carlos Pedro, presidente do conselho fiscal.

Em janeiro de 2021, receberam uma proposta da Câmara Municipal de Lisboa para fazerem uma parceria com a cantina como resposta emergente à pandemia. A CML tinha recebido algumas reacções bastante positivas sobre a comida ali servida. Este financiamento ajudou a melhorar as condições da cozinha e a criar postos de trabalho fixos. Neste momento, têm quatro contratos a tempo inteiro na cozinha. Os restantes 13 membros são voluntários, incluindo a direção.

No dia anterior, Elizete Andrade, presidente da associação de moradores, mostrava alguma preocupação em relação ao futuro financiamento por parte da CML. O protocolo ia acabar no final de junho e ainda não havia uma proposta de renovação ou de novo protocolo. O período mais grave da pandemia já passou, mas agora assistimos a um grave problema de inflação que está a deixar muitos sem conseguirem fazer as compras da semana no supermercado e este apoio continua a ser essencial.

No dia seguinte, a CML tinha prolongado o protocolo por mais um mês. José Mário Botelho, o vice-presidente da associação, não está tão preocupado. Acredita que chegará um novo protocolo de apoio nos próximos meses, pois têm “boas relações” com a CML e as pessoas gostam das refeições quentes que eles ali servem, ao invés das comidas pré-feitas distribuídas por uma outra instituição.

A cantina funciona desde maio de 2015. Começou com 20 refeições por dia na Escola EB 2 3 e hoje entrega para o bairro cerca de 75. Cremilde Caldas, a tesoureira da associação, diz que “foi a necessidade dos moradores que fez começarem a fazer entregas. Havia muitas pessoas que precisavam das refeições, mas não tinham como se deslocar até à outra ponta do bairro. Depois disso, o número de refeições aumentou.”. Hoje, as refeições já não são consumidas na cantina, mas sim entregues ou levadas para casa. “É que as pessoas diziam que, se levassem para casa, conseguiam fazer daquele menu duas refeições. Comiam a sopa ao jantar e o prato era o almoço do dia seguinte.”

As pessoas chegam à associação essencialmente através do passa-palavra. “As pessoas que cá vêm gostam, ficam, contam aos vizinhos que experimentam, gostam e ficam também.”, conta Carlos Pedro. “Mas, muitas vezes, o problema do preconceito faz com que pessoas que precisam de ajuda não a procurem por terem vergonha. Algumas pessoas conhecem-me a mim ou ao Mário e não querem vir cá, porque são nossos amigos. Mas não há problema nenhum em virem cá. Qualquer pessoa pode encomendar as nossas refeições, não são só para as pessoas com maiores dificuldades financeiras.”

Edmundo faz este trabalho como se quisesse a melhor nota de desempenho. No dia em que o acompanhámos, há um saco de ráfia que não aparece. A refeição foi posta num saco de plástico e Edmundo só se apercebeu quando chegou ao local da entrega. “Mas que raio aconteceu ao saco?”, sussurrava para si, enquanto procurava o saco na carrinha. O Sr. Edmundo procurou em todo o lado e não sabia o que tinha acontecido para se perder o saco. Ninguém ficou sem jantar ou se chateou, mas passou as três entregas seguintes a sussurrar para si “mas que raio aconteceu ao saco?”.

No 1º andar de um dos prédio do bairro, mora uma senhora com 100 anos. Já estava à janela, à espera de Edmundo, quando a carrinha parou em quatro piscas no outro lado da estrada. “É uma senhora com muita energia, apesar da idade”, explica o voluntário. Tinha começado há uns dias num centro de dia para se ocupar. Edmundo tem chave da porta de entrada do prédio, mas, ainda assim, entra à cautela. “Às vezes, a dona Glória esconde-se aqui para me tentar pregar um susto.” Mas, desta vez, esperava-o à porta com um sorriso e o seu saco vazio de padrão leopardo que tinha vindo no dia anterior.

As entregas que faz são essencialmente a pessoas mais idosas que já não se conseguem deslocar à associação e, ao ir a casa destas pessoas todos os dias, certifica-se de que as pessoas estão bem. Edmundo tem medo de, um dia, chegar a uma casa e não lhe abrirem a porta. Nunca lhe aconteceu em mais de quatro anos, mas, um dia, foi fazer uma entrega e deparou-se com uma porta arrombada e um socorrista em cima de um corpo a tentar reanimá-lo. Deixou o saco à porta, pois a refeição era para outras pessoas que também moravam na casa, e voltou a descer as escadas a correr. Soube, mais tarde, que se tinha tratado de uma overdose.

A última entrega do dia foi ao Sr. Pereira, de 92 anos, que já estranhava a demora e esperava ao pé de uma árvore em frente ao prédio com o seu cão. Tinha o saco do dia anterior aos pés. Sorriu, mal viu a carrinha, e pediu a Edmundo que enviasse cumprimentos à dona Elizete e à “Paulinha”, que costumava fazer as limpezas na sua casa e agora ajudava na associação. Edmundo disse que seriam dados e despediu-se com a mesma pressa das outras entregas.

O dia chega ao fim às 19h30. Amanhã voltavam a repetir tudo outra vez.

O Artéria é um projecto de jornalismo comunitário. É feito por voluntários, supervisionados por um jornalista profissional.

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