Rosa luta pela dignificação de um bairro degradado junto à Graça

28 de Dezembro, 2022

Reportagem

Samuel Alemão
Durante décadas, a Quinta do Ferro tem sido uma espécie de enclave de decadência e pobreza bem no centro da cidade, entre a Graça e Santa Apolónia. Depois lá ter vivido no início dos anos 70, uma antiga funcionária pública nunca deixou de acreditar na sua requalificação. “Muita gente gostava de viver aqui. É um sítio com uma claridade como poucos têm”, diz.

Ao caminhar por um dos arruamentos macambúzios da Quinta do Ferro, bairro degradado e de origem ilegal entalado entre a Graça e a zona de Santa Apolónia, a meio de uma tarde nublada de Dezembro, Rosa Souza Gomes não esconde o apreço pelo local. “Já reparou na luminosidade que aqui se tem?”, questiona, dando ênfase a uma faceta já por si notada momentos antes.

Aos 73 anos, esta mulher sóbria, habituada a muito lutar ao longo de uma recheada biografia, pressente que os esforços despendidos pela reabilitação e legalização do sítio onde viveu nos primeiros tempos da vida adulta estão prestes a dar frutos.

Após décadas de uma estranha e generalizada indiferença, primeiro, e depois de reivindicações mais sonoras – tendo sido feita a “revelação” mediática da existência daquela situação, há meia-dúzia de anos, no decurso de um festival multicultural centrado na freguesia de São Vicente -, as coisas parecem agora bem encaminhadas.

A Operação de Reabilitação Urbana (ORU) da Quinta do Ferro ganha contornos discerníveis, prevendo-se que a sua concretização culmine, como há muito desejado, no loteamento da área e na requalificação do edificado e dos espaços comuns, incluindo a construção de espaços verdes. Afinal, nada mais do que a transformação num bairro como os outros. Mas para aqui se chegar percorreu-se um longo caminho.

Uma jornada que Rosa conhece bem. Foi para ali morar em 1969, quando casou aos 20 anos, numa época em que o marido era detentor de direitos de propriedade sobre metade de dois velhos imóveis. “Isto aqui era tudo ao molho e fé em Deus. Quase toda a gente que vinha de fora e não tinha onde morar vinha para aqui. Era uma espécie de aldeia dentro da cidade”, explica a agora administrativa reformada, lembrando que, já naquela altura, as condições eram más.

O conjunto habitacional havia surgido na década de 30 do século passado, com a construção desordenada de casas de diferentes tipologias e qualidades, mas sempre ao arrepio das regras urbanísticas. “Viviam aqui mais de duzentas famílias. Havia todas as profissões, fossem marceneiros, carpinteiros, funcionários ou peixeiras”, recorda Rosa, que, na época em que ali morava, trabalhava como operária fabril.

Nascida numa aldeia do concelho de Arcos de Valdevez, cedo demonstrou vontade de se autonomizar e, fugindo ao que parecia ser um prometido futuro como freira – “queria ser professora”, diz -, aos 10 anos, havia-se já mudado para Viana do Castelo, onde trabalhou numa pensão, sob alçada de conhecidos da família.

Rosa Gomes junto ao imóvel que é agora da sua filha.

Sonhando com a vida numa cidade maior, aos 18 anos, decide rumar a Lisboa à revelia dos desejos da mãe. Instalou-se na zona de Sintra, em casa de uns tios. Só depois do matrimónio se mudou para a Quinta do Ferro.

Esteve ali durante sete anos e, após conseguir um emprego como escriturária no Hospital da Marinha – no qual ficaria até se reformar, em 2013 -, decidiu que era altura de investir numa casa com mais condições. Em 1976, comprou o apartamento onde ainda hoje vive, no início da Rua do Vale de Santo António, situada uma escassa centena de metros da Quinta do Ferro.

Nessa altura pós-revolucionária, assistiu-se à intensificação da construção de barracas e das ocupações ilegítimas de imóveis. A falta de condições tem sido o denominador comum do bairro, situado entre as ruas Leite de Vasconcelos e Entre Muros do Mirante e onde são comuns os relatos de casas sem água, esgotos ou electricidade. A isso acresce ainda o tráfico de droga na zona, intensificando a sensação de marginalização e degradação.

Em 2017, tornou-se público o projecto de requalificação do bairro proposto pelo arquitecto Tiago Mota Saraiva, do ateliermob e da Cooperativa Trabalhar com os 99%. Pedido pela Associação dos Amigos da Quinta do Ferro (AQF) – que junta moradores e proprietários e da qual Rosa é vice-presidente -, na sequência da atribuição de 50 mil euros pelo programa municipal BIP/ZIP, avançava pistas para a reabilitação do edificado e do espaço público.

Sugeria-se a construção de um jardim e de uma escadaria entre a Escola Gil Vicente, na Rua da Verónica, e uma praça a criar na Rua Leite de Vasconcelos. Nada foi feito, até ao ano passado, quando a Câmara Municipal de Lisboa aprovou a criação da Área de Reabilitação Urbana da Quinta do Ferro.

“Sempre me interessei pela Quinta do Ferro, sempre estive focada em que se fizesse algo pelo bem de todos”, diz Rosa, cuja filha é agora senhoria do edifício em melhor estado, depois de ter investido na sua recuperação. “Muita gente gostava de viver aqui. É o centro da cidade. E tem um claridade como poucas têm”.

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