Ilustração: Adão Conde
Um desfiar das memórias de adolescência de uma antiga habitante dos Olivais, uma das maiores – e talvez das mais esquecidas – freguesias da capital portuguesa, a funcionar também como viagem sentimental por uma certa Lisboa, durante os anos 80 do século passado. Ou como a importância simbólica que damos aos lugares, claro está, depende da forma como os vivemos. Num peculiar registo memorialista, a leitora Verónica Guiomar oscila, de forma descomplexada, entre um apelo à lembrança de referências colectivas e a invocação de reminiscências íntimas. Uma cidade também é isto.
Era eu miúda quando o meu pai trabalhava como pasteleiro na Pastelaria Tabuense, nos Olivais. Muitas vezes fui trabalhar com ele. Gostava de acompanhá-lo no Natal para embrulhar os brindes do bolo rei. Muitos embrulhinhos fiz e, sem que ninguém visse, em vez de um brinde, colocava dois ou, em vez do brinde, colocava uma fava. E punha-me a imaginar a surpresa daqueles a quem iria calhar o brinde.
Vivíamos no Forte da Casa, Vila Franca de Xira, onde eu passava a vida a brincar na rua. Aos 12 anos, os meus pais separaram-se e fui morar para Moscavide (Loures), largando as brincadeiras de rua para passar a estar fechada em casa.
Fui para a Escola Eça de Queirós, nos Olivais. E foi assim que fui até aos Olivais para conhecer a nova escola. Daquilo que vi, não foi a escola que mais me animou, que me pareceu “normal e igual a tantas outras”, mas sim os Olivais. Fiquei encantada pelas ruas largas, pela quantidade de espaços verdes e de adolescentes como eu. Logo me imaginei de volta às ruas a fazer o que mais gostava… caminhar.
Naquele tempo, tal como hoje, caminhava-se para todo o lado, ajudando o facto de estarmos localizados entre Moscavide, Portela, Prior Velho, Aeroporto, Chelas e Marvila – e agora o Parque das Nações. É uma zona que tem muito comércio local e, por isso, não é necessário recorrer ao carro e às grandes superfícies.
Embora os Olivais sejam uma freguesia com muita população, todos se conhecem, tudo se sabe. Até há pouco tempo, nas vivendas do Bairro da Encarnação, as vizinhas entravam porta adentro para pedir sal, coscuvilhar ou para verificarem se os filhos da vizinha se estavam a portar bem enquanto a mãe saiu.
Hoje, já tudo meteu trancas à porta, mas há ainda o espírito de boa vizinhança entre os nascidos e criados nos Olivais, contrastando com os novos moradores que preferem passar macambúzios, ao invés de retribuir uma saudação, e fazem questão de murarem bem alto os quintais… Não diria que sou uma “velha do Restelo”, no caso dos Olivais, mas faço parte de uma geração que tem uma certa nostalgia por outros tempos aqui vividos.
Estou ligada à Escola Eça de Queirós até hoje, e já tenho 47 anos, sendo uma das que promove o convívio anual entre os antigos alunos e professores. Uma coisa que a distinguia era a camaradagem. Falava-se muito da droga existente na escola, chegando a ser notícia de alguns jornais. Todos sabíamos quem se drogava, mas nunca houve confusão. E eu, sinceramente, nunca os vi a fazê-lo. Um deles era o “Relvas”! Andava por lá na escola, mas nunca o vi com livros ou cadernos. Era um bem disposto e nunca fez mal a ninguém. O Relvas morreu novo. A droga levou muitos nos Olivais.
Nos meus tempos da Eça, havia um local mítico e sagrado de que, ainda hoje, todos falam… A Zarolha! O porquê deste nome? Foi a alcunha dada à moça que lá trabalhava. Nesta taberna, que seguramente teria outro nome, mas que ninguém lembra ou soube, eram comemoradas as grandes notas, boas ou más. Éramos menores, mas isso nunca foi problema. Quantas vezes bebíamos um copo para estarmos inspirados para um teste? Existia também o quiosque junto à escola, que nos fazia o super-favor de vender cigarros avulso…
Alcunhas todos tínhamos. Eu era a “trinca espinhas”. O bullying, naquela época, eram pequenas quezílias que duravam um par de horas. O pior que podia acontecer era alguém escrever nas portas das casas de banho algo como Mafalda + Paulo = Amor eterno… Minutos depois, já a Mafalda era acusada de andar a fazer olhinhos ao Paulo e o pobre do Paulo, que haveria de ser o mais feio ou escanzelado, andaria todo contente a pensar que era verdade ou se esconderia por ser o assunto do dia.
Eu andava sempre com a minha colega Helena. Foi ela quem me apresentou aos Olivais… Tantas vezes fomos ao Pão de Açúcar que ficava na zona, onde é hoje o Centro Comercial Spacio.
Falávamos em curiosidades do bairro, como o facto da Miss Portugal Adriana Carriço ser dali e amiga da Helena. Dormi na casa dela e, logo pela manhã, tínhamos o pão deixado à porta pelo Sr. Zé, o padeiro. Falávamos dos professores, como a lixada Vóvó Dinamite ou do Lemos, que, no início, impunha respeito, mas depois até andava connosco ao colo, ou do Tomatinho, que trabalhava no pbx, ou da Dona Rosa, que andava atrás de nós com uma vassoura.
E claro que também falávamos de amores. Atrás de um desses amores, vim uma vez ao Bairro da Encarnação, à mercearia do Manuel do Centro, roubar um cartaz de publicidade a uma bebida, porque o Filipe (meu colega) era o rapaz do cartaz e, assim, passou a estar na parede do meu quarto.
Um dos pontos de encontro era a Leitaria do Senhor Pombo, onde nunca vi vender leite, nem outra coisa que não fossem bebidas alcoólicas. Íamos à feirinha que se fazia junto à Padaria da Encarnação comprar roupa, à Dona Margarida, e, mais tarde, no Mercado Norte. Namorávamos nos bancos da Alameda da Encarnação e no Vale do Silêncio. Nos Olivais, casei e passei a morar. Após o jantar, íamos ao Carla beber o café e largar conversa fora. Recordo com saudade os bolos do Central e as conversas com o Senhor Campos, que tinha três filhos aos quais, carinhosamente, lhes chamávamos Campo Grande, Entrecampos e Campo Pequeno. Após a sua morte, os filhos trespassaram o café e assim se perdeu a coleção de azulejos antigos da Viúva de Lamego.
Foi a ele, ao meu sogro, Manuel Fortes, e à Dona Manuela quem ouvi contar histórias do bairro, como a de Eva Peron ter ido ao bairro visitar obras sociais do Salazar. Ou que, nos tempos de miúdos, nas ruas de terra batida, andavam descalços a jogar à bola, à carica, ao bilas, ao pião, carrinhos de esferas, a saltar à fogueira com troncos da Rua dos Eucaliptos, e que fugiam à polícia… Foi deles que ouvi a primeira vez a expressão “ir à chinchada”, que se refere à arte de roubar frutas das árvores dos vizinhos. Era a adrenalina da época! Da mesma geração, era o Senhor Fernando Perfeito, da loja de eletrodomésticos, que vendia a prestações. No antigo cinema da Encarnação, assistia-se a peças de teatro, concertos e até ao Clube Amigos Disney, com o Júlio Isidro, onde, um dia, esteve o famoso Kitt, o carro da série Justiceiro, que tantas proezas fazia na série, mas que ali se viu grego para entrar e sair.
Existiam figuras caricatas, como o Trinta e outro a quem eu chamava de Beato Salú (personagem da telenovela brasileira Roque Santeiro), que viviam da esmola e caridade dos moradores. Também estes já se foram.
Com 20 anos, perdi dois amigos, o Carica (Paulinho) e o Otávio, em acidentes de mota. Um por causa da tampa de uma sarjeta enquanto experimentava a mota nova de um amigo, quase à porta de casa, e o outro teve a infelicidade de, junto aos antigos cinemas Alfa, um carro lhe embater numa roda e o projetar contra o separador central. Ironia do destino foi o pai ir a passar e assistir ao acidente. Estas duas perdas foram muito sentidas no bairro, por serem dois miúdos que todos viram nascer.
E as férias de Verão? Só tínhamos dinheiro para ir, durante os três meses de férias, às Piscinas dos Olivais. Era frequente famílias inteiras, com o farnel, irem lá passar o dia. Encontrávamo-nos todos lá. Numa noite de festa, íamos à Feira Popular de Lisboa. Um dia, a piscina fechou, assim como a Feira Popular.
Passaram anos… Casei-me com um filho dos Olivais, com quem tive dois filhos. A eles, dei a conhecer os Olivais, onde ainda se anda muito a pé, mas onde já não se brinca na rua. Os miúdos hoje preferem socializar pela internet. Levei-os muitas vezes ao Vale do Silêncio, à Alameda da Encarnação e à Quinta Pedagógica. Na Quinta Pedagógica deixaram, como tantos outros, as suas chuchas na árvore das chuchas. Já não se brinca ao pião, ao carrinho de esferas, à cabra cega, à mamã dá licença, ao jogo elástico… Já nem se toca às campainhas para depois se fugir! Quem havia de dizer que estas brincadeiras iriam ficar fora de moda?
Tenho que mencionar o orgulho que os Olivalenses têm por terem tido vizinhos como o Zé Pedro dos Xutos ou o comediante Raminhos e o ator Pedro Pernas – alunos da Eça de Queirós -, bem como o escritor José Luís Peixoto, que escreveu uma crónica sobre os Olivais, onde fala das suas memórias e se despede prometendo voltar. Uns vão, outros vêm. O certo é que quem vai sente saudade.
Termino a falar numa curiosidade das vivendas no Bairro da Encarnação, a qual gosto muito de observar! Desde que o bairro foi construído e, ano após ano, as andorinhas voltam ao mesmo local. Passando o ninho de geração em geração. Também elas gostam tanto dos Olivais!
Quis o destino que o meu casamento tivesse um fim e tive de sair dos Olivais. No bairro, outrora social, agora as casas são caríssimas. Do divórcio houve as partilhas e eu só consegui pagar uma casa em São João da Talha (Loures).
Tal qual as andorinhas, também eu tive de partir, mas espero poder voltar! Espero que seja um até já! Não nasci nos Olivais, mas adotei-os e eles adotaram-me a mim.
Fique a conhecer mais sobre o trabalho do artista gráfico Adão Conde em: www.adaoconde.art/
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