Tinta por uma linha.
A sétima crónica de Francisco Mouta Rúbio, acompanhada pela ilustração do artista Dualgo.
A necessidade higiénica de um passeio cospe-me para fora do refúgio protegido. Antes de me afastar da teia que entreteço entre manuais de literatura (apenas obrigações me conseguirão afastar das ideias e palavras de Manuel António Pina), antes de abandonar os insondáveis ecrãs (que nos prendem a uma fatigada produtividade), a liberdade de um espanto literário. Tropeço na entrada do prédio. Em cima da caixa de correio, dois livros. Três palavras. Imediatas surgem. Que livros serão? Sempre que decido abandonar esse universo de páginas cavalgando questionamentos, que são os livros, encontro outros, descubro-me noutros, sorrio perante as páginas do outro. Um dia, esta obesidade literária tem de ter um fim, terá? Os livros devem estar ligados, nesse fio invisível, de quilómetros infinitos, que nos mastigam, naturalmente como na boa ficção, e nos cozem às referências. Se o leitor entrar, ou se já entrou, nesse labirinto literário, dificilmente poderá sair dele.
Ali em baixo, na entrada do meu prédio, mais livros, sempre diferentes dos das estantes aqui de cima. Dentro de mais um universo de ideias embrulhado adensa-se o mistério da materialidade dos livros. Mas que livros serão estes?
Aqueles são os livros enviados para os vizinhos do segundo andar, essa gente que insiste em viver encavalitada sobre a minha cabeça, navegando em sons e movimentos desvanecidos, dia após dia. Não estou a falar de livros chegados nessas caixas despersonalizadas e cinzentas gritando nomes de empresas multinacionais ou dos envelopes comerciais distribuídos em massa. Não, atenção!, estou a falar de um embrulho artesanal medido no tempo e espaço necessários ao livro, com cordel, cuidado e pormenor. Coisa bonita de mais para o olhar ignorar. Gesto que obriga a travar. E a literatura começa assim. Nos gestos que contrariam este tempo anti-literatura, um tempo que empurra para o abismo da utilidade. A nossa cidade, a cada esquina, a cada caixa do correio ainda permite a atenção a esses gestos ociosos.
Na dúvida, a curiosidade deve ser a motivação certa para agir. O lápis, companhia indispensável para quem escreve em qualquer sítio, o caderno, amigo inseparável dos letrados desmemoriados e a falta de vergonha na mente também podem ajudar. Uma receita sem engenho algum. Enganem-se os que pensam que isto são necessidades ou saudosismos epistolares. Nada disso: apenas indiscrição genuína. Rasgo mais uma folha do caderno, escrevinho rapidamente, antes que outro vizinho chegue e estrague o mise-en-scène, e assim vai: Qual é o livro, vizinha?, lancei, acrescentando para assegurar resposta certa: (peço desculpa pela curiosidade indomável). Assinei, deixei um cumprimento e o número do andar também.
Imagino o outro pelo que lê, como lê e, sequer, se lê. Gosto de adivinhar os livros da vida dos vizinhos, profetizo, perante os temas das conversas, as leituras diárias dos estranhos no café, tento decifrar influências obscuras em colegas jovens autores. Diz-me o que lês… Fantasmagorias abusivas, ao pensar melhor em tudo isto.
Aproveito o passeio peripatético até ao Mercado de Sapadores para continuar a desenhar, no avesso do pensamento, múltiplas hipóteses sobre os tais livros protegidos por aquele embrulho embelezado por uma tinta azul, incomum, que tingia certas palavras: “Reality is merely an illusion, albeit a very persistent one.” Deixa cá ver, aquilo tem ar de vir de uma pequena editora, talvez independente ou de um alfarrabista mais dedicado aos afectos, um livreiro amigo ou uma pequena edição de autor. Só pode ser um romance distópico ou então algo muito lamechas, aquele amor com setas e corações. Mas Adelaide tem traços sérios, circunspectos. Uma biblioteca que se respeite não tem títulos desses, as dúvidas adensavam-se ao somarem-se os passos do caminho sem destino. Preso nas questões sem resposta, inverto o caminho e aposto no regresso.
Entro no prédio verde que nos esconde do espaço público, e em cima da caixa de correio dois bilhetes e apenas um livro. Três palavras. Imediatas surgem. Som e Fúria, Faulkner, escrito no reverso do bilhete que tinha escrito. Ao lado, mantinha-se um dos livros: este é para ti, vizinho, leio. Abri e fiquei como aquele emoji que tem estrelas no lugar dos olhos, enquanto conferia, História Abreviada da Literatura Portátil de Enrique Vila-Matas. Será que a Adelaide também costuma mergulhar nesse exercício de adivinhar os autores da vida dos vizinhos?
Veja mais sobre os trabalhos de Dualgo em: http://instagram.com/du.algo
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