GENTE DE ALCÂNTARA, GENTE DE LISBOA

Autor

Camila Tavares
25 de Junho, 2023
Pode um livro elevar a auto-estima e ajudar a preservar a memória colectiva de um bairro? Gente de Alcântara, escrito pelo jornalista Jorge Flores, faz o retrato de duas dezenas de habitantes desta freguesia e, de forma indirecta, uma radiografia à própria cidade. Camila Tavares, estudante de Ciências da Comunicação e também ela alcantarense, esteve à conversa com o autor.

Fotografia de Estelle Valente

Apesar de ser sexta-feira, o “Café do Dias”, morada incontornável do bairro, está quase vazio. Para além dos clientes sentados na esplanada, só há mais três pessoas dentro do estabelecimento. Um homem ao balcão discute os temas da actualidade com Dias (Pedro Silva) o proprietário, enquanto este limpa os copos acabados de sair da máquina. Sentadas na mesa à entrada, duas mulheres mostram as fotos dos filhos uma à outra. 

É neste cenário que Jorge Flores, jornalista e escritor, nos fala de Gente de Alcântara, livro que dá voz e vida a um conjunto de pessoas da freguesia. “Quando comecei a pensar no projecto procurava, sobretudo, uma zona de Lisboa em que continuasse a existir um sentido de bairro e encontrei isso aqui”. O facto de muitas crianças ainda brincarem com carrinhos de rolamentos — “ali, no jardim” — aponta, foi um dos primeiros factores a despertar a sua atenção. “Há aspectos em que o tempo parece ter parado e achei isso delicioso”. 

Através de uma amiga conseguiu chegar ao presidente da Junta de Freguesia, fazendo assim com que o projeto se começasse a desenrolar. Mas não foi um processo fácil, admite. “Logo na primeira entrevista (com o Vitinha), percebi que tinha um problema, pois só a história dele dava um livro. Como é que vou resumir isto, pensei?” 

O objectivo passou sempre por fazer um documento que honrasse o património humano e social de Alcântara. Que valorizasse as suas gentes. “Por norma, os lugares ganham sempre às pessoas, pois estes ficam e as pessoas passam, mas na verdade são elas que fazem um bairro. Queria que essas histórias fossem contadas e ficassem registadas”. 

No entanto, fazê-las falar de Alcântara foi mais difícil do que fazer com que falassem delas próprias. “Muitas vezes a conversa resvalava para as suas vidas. Tenho um caso de um senhor, o senhor Américo, que estava sempre a fugir para Angola, porque foi uma fase muito marcante para si”. Algo que lhe trouxe um trabalho e responsabilidade acrescidas. “Nunca pensei que me fosse ver com tamanha responsabilidade”, confessa. Foi também um exercício de humildade no qual se tornou fundamental colocar o seu ego de parte. “Isto não era sobre mim. Era mais importante contar as suas histórias do que ter grandes frases que me fizessem muito inteligente ou grandiloquente”.   

Um cuidado que deu os seus frutos, garante Dias, também ele um dos protagonistas da obra. O proprietário do café expressa sem reticências “o sentimento bom e de partilha” que sentiu por fazer parte de um projeto destes. Salienta ainda a possibilidade de “passar para as novas gerações” todas as suas experiências e ao mesmo tempo “avivar a memória dos mais velhos”. 

Com as imagens a cargo da fotógrafa Estelle Valentea cada história corresponde um retrato — o autor admite que os protagonistas poderiam ser muitos mais. Apercebeu-se disso na apresentação, que teve lugar na biblioteca local. “Cruzas-te ou cumprimentas alguém e dás por ti a perguntar-te: como é que esta pessoa não está no livro?”

Publicado com o apoio da Junta de Freguesia de Alcântara, a ambição nunca foi chegar ao mercado editorial ou a toda cidade. Bem pelo contrário. “Foi pensado mesmo para as pessoas  do bairro”. O jornalista não esconde, apesar de tudo, a vontade de continuar a escrever sobre diferentes zonas de Lisboa. Porventura, criar uma colecção. “A minha ideia passa por tentar fazer a Gente de Alfama, a Gente de Misericórdia’, Gente da Graça’”…, enumera, não escondendo, contudo, as dificuldades. “É muito complicado falar com as juntas de freguesia e chegar a acordo para pôr a coisa de pé”. Mas não vai desistir, garante. “Alcântara foi a primeira, mas não será a última”. A bem da memória colectiva da própria cidade. 

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O Artéria é uma iniciativa de informação comunitária lançada pelo PÚBLICO com o apoio da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. É feito por voluntários, supervisionados por um jornalista profissional.

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