Fotografias: Miguel Madeira
Manu de La Roche é considerada uma fonte de inspiração para centenas de dançarinos e dançarinas de burlesco. Quando decidiu mudar a sua vida, Manuela Rocha, por já ter feito representação, sabia lidar com a pressão dos palcos. Saciando a sua curiosidade, participou em workshops até se descobrir dentro da arte.
Cativada pela essência do burlesco, Manu de La Roche atribui um elevado valor artístico a este tipo de atuação, reforçando a exigência da produção e a beleza perfeccionista na elaboração dos fatos. Para a performer, é importante que a sua audiência saiba que o burlesco tem a versatilidade de ser feito “em qualquer tipo de casa de espetáculos e em qualquer sítio que queira acolher um espetáculo”.
O coach erótico Rui Simas situa o burlesco no território do erótico, que caracteriza como “o antes, o durante e o após sexo”. Para ele, coisas simples como comer podem ser eróticas, uma vez que exploram os sentidos e a imaginação de quem o faz. O burlesco acaba por usar a dança, a sensualidade e a provocação de maneira a brincar com as expectativas de quem o vê. Esta mistura artística de sexualidade e performance é o que torna o burlesco tão especial e o que o separa de outras práticas.
Apesar do seu guarda-roupa conter peças eróticas e centrar as danças nos movimentos sensuais do seu corpo, Manu tenta distanciar-se do maior estigma do seu meio: o de que o burlesco está associado à parte sexual do espetáculo. Especialmente, pelo facto de ser posto no mesmo grupo de práticas mais diretamente relacionadas com a indústria sexual. “Cabe ao burlesco ser algo mais dentro da provocação, do teasing para com o público, e o striptease e a indústria do sexo já são diferentes”.
Ao explorar os limites do erotismo, a dançarina tem a missão de tornar as suas representações “visualmente apetecíveis”. Desta forma, os espetáculos permitem que se conecte com a sua arte e cresça a nível pessoal: “Há quem crie em burlesco personagens. No meu caso, não, é uma extensão de mim própria”.
Ritto Wanderlust, um perfomer de boylesque, o burlesco praticado por homens, gosta da ideia de exagerar a sua masculinidade e brincar com as expectativas do género.
“As pessoas, quando se fala em burlesco, pensam logo na mulher com os corpetes com as plumas, as lantejoulas, a despir-se e a ser atrevida. Os performers fazem coisas muito mais à frente e muito alternativas e diferentes”.
Mundo de liberdade e expressão criativa
Tal como Manu, Rogério Costa iniciou a sua carreira nas artes performativas, mais especificamente, no teatro. O performer de 39 anos já dava aulas de burlesco quando foi convidado para participar num espetáculo natalício desta atividade. Nos palcos, Ritto Wanderlust desafia as ideias das pessoas do que é o burlesco, com atuações que vão desde Lisboa até Roma.
Pinta este mundo como um de liberdade e expressão criativa, duas facetas que o atraíram imediatamente. Contudo, a satisfação vem mesmo do efeito que um espetáculo pode ter no seu público: “Acima de tudo, o que mais gosto desta área é dar a mostrar às pessoas a minha arte e saber que, na memória delas, vai ficar o meu trabalho”. Para além das atuações, trabalha como actor há 21 anos e até já desempenhou a função de contrarregra numa produção teatral. Além disso, dedica-se às aulas de burlesque chair dance, que ensina.
Esta ajuda na auto-descoberta e conexão erótica é algo que melhora a vida daqueles que procuram mudar como olham para si mesmos: “Este ganho acaba por ser transposto para o dia-a-dia e aumentar a qualidade de vida da pessoa. Logo, é um grande contributo para a comunidade”. Manu sente o mesmo, tendo realizado o esforço, mesmo nos tempos mais complicados da pandemia, de fazer diretos no seu Instagram a dar aulas e workshops.
Para além das atuações e aulas, Rogério também tem um canal de Youtube com o nome Ritto Wanderlust, onde ensina as diferentes vertentes do burlesco, com o intuito de explicar e tornar acessível o conhecimento desta forma de arte. Manu também dá aulas relacionadas com a temática, assim como gere uma loja online onde vende tapa-mamilos.
Para além de desafiarem estigmas sociais, muitos artistas também têm de enfrentar as expectativas que existem dentro desta indústria.
A união da comunidade faz a força
Ritto admite que a vontade de desafiar normas trouxe alguns desafios na sua carreira. Para encontrar trabalho, teve de mudar a mentalidade de muitos dos locais, especialmente por ser um homem numa indústria maioritariamente feminina. Lisboa diferenciou-se por ser “rica na sua diversidade e qualidade” e sente que a sua arte tem sido bem recebida. “Graças a Deus, de forma geral, tenho sido sempre bem aceite e chamam-me sempre para voltar aos sítios para apresentar o meu trabalho”.
Contudo, Rogério não deixa de louvar o impacto que muitas das suas colegas tiveram neste desafio, ao sugerirem o seu nome em locais, algo que é prática comum entre artistas: “Todos nós precisamos de todos e, como se costuma dizer, a união faz a força. Se fosse eu sozinho, acredito que seria muito mais difícil e não tinha singrado como já singrei na vida”.
Um dos momentos que destaca é a altura em que algumas pessoas relacionadas com o Porto Burlesque Festival quase consideraram não atuar num festival organizado por Manu, por ele ser um homem. No final, e como consequência de um incentivo, acabou por fazê-lo: “Tive sempre a defesa da Manu. É graças a ela, por acreditar em mim, que fui lá e nunca vou deixar de o reconhecer”.
Existe um grande esforço em ajudar novos artistas a entrar no meio, devido ao facto ser bastante específico e fechado. Manu de la Roche diz que sempre lutou por tornar esta forma de arte mais acessível e aberta, de modo a que o burlesco lisboeta esteja sempre a expandir-se: “Não é um meio fácil e tento sempre ajudar quem começa a aparecer”.
Filomena Francisco também está familiarizada com este mundo, sendo dona do The Lingerie Restaurant, em Lisboa, um estabelecimento que mistura a tudo o que é comum num restaurante com elementos eróticos, entre eles atuações de burlesco.
Desde a abertura em 2017, que o estabelecimento se tem destacado pela qualidade, ganhando vários prémios de consumidores, e mantém-se um dos poucos locais a oferecer este tipo de experiência em Lisboa. E é o único gerido por uma mulher. Enquanto dona deste estabelecimento, Filomena sentiu esta ajuda dentro da comunidade, especialmente na parte de arranjar trabalho: “Não têm medo da competição. Por serem uma minoria, encontram coesão entre si próprios”.
Para Manu, este ambiente de entreajuda é parte do motivo porque a comunidade existe e a razão de ser tão forte. E isto vai para além de recomendações. Muitos destes dançarinos atuam juntos e apoiam-se uns aos outros nas suas performances. Este laço é mais que uma cooperação profissional, é uma relação de amizade e apoio: “É super importante estar a par do trabalho de toda a gente, para também aprendermos e evoluirmos com as experiências dos outros artistas».
Memórias de um passado recente
Rogério retribuiu a ajuda das suas colegas, ao mencioná-las, quando questionado sobre locais lisboetas que recomendaria para assistir a um espetáculo de burlesco. Dentro das sugestões, temos o AveNew, onde artistas como Veronique e Luise L’amour atuam; o Clube Ferroviário e o Lingerie Restaurant, onde podemos encontrar Lady Myosotis e a Manu; o Museu Erótico de Lisboa e o Maxime Hotel, onde Ritto continua a atuar.
Manu de la Roche conheceu o íntimo de Lisboa quando a cidade ainda pertencia só aos portugueses. Encantada com a vertente sensual do Cais do Sodré, a dançarina observou a sua transição até ser o centro da vida noturna e do burlesco da capital. Confessa lembrar-se com alguma nostalgia do passado recente da cidade para onde se mudou em 2014. No tempo em que ainda não existia a “rua cor de rosa” – que surgiu em 2011 -, Lisboa era caracterizada pelas suas singularidades e pelas sensações “características e portuguesas” que só o Cais do Sodré́ emanava, considera.
Entre os diversos bares que frequenta em Lisboa, Manu não hesita em recomendar o “Roterdão”. Adorado por muitos pela sua energia contagiante e capacidade de adaptação, é dos bares mais antigos do Cais do Sodré́. Aproveitando a versatilidade do espaço, o estabelecimento lisboeta tornou-se casa para muitos artistas de burlesco, onde estabeleceram uma rede de contactos possibilitada pela espetacularidade de produção e pela mente revolucionária e liberal da gerente.
Do cooperativismo ao erotismo
Quando o marido a convidou para jantar num restaurante erótico no Porto, no Dia dos Namorados, Filomena ficou de pé atrás. “Sempre tive uma vida daquelas padrão, de uma pessoa casada, com dois filhos e de uma escola católica”. Ainda que tenha parecido “estranho à primeira vista”, Filomena Francisco rendeu-se ao charme do restaurante: “é uma forma muito interessante de brincar com o tema do erotismo e, de alguma forma, ir desbloqueando um bocadinho a rotina dos casais”.
Como tal, deixou para trás o seu trabalho enquanto psicóloga organizacional, tirou uma pós-graduação em sexologia e iniciou uma nova aventura. Inspirada na sua experiência no Porto, abriu o The Lingerie Restaurant em Lisboa, há cinco anos.
Se é verdade que, muitas vezes, o erotismo pode ser visto como algo um pouco fora do que é considerado convencional, o facto de ser mulher dificultou a sua experiência. O desejo de desafiar normas e construir um negócio para todos aqueles que, como ela, ainda não se tinham conectado com o erótico, foi recebida com julgamento: “Com um homem acaba por ser muito mais fácil, porque é mais aceitável que os homens entrem mais nestas temáticas do que uma mulher, ainda por cima casada com filhos”.
Tendo trabalhado na área de recursos humanos desde sempre, a maneira como os seus colegas reagiram à viragem profissional que encetou foi outra coisa que a chocou: “Contam-se pelos dedos as pessoas que me contactaram e com dois aquelas que visitaram o restaurante. Estamos a falar de pessoas com um nível de conhecimento elevado, era esperado terem uma abertura de mente para entender o porquê de ir por outro caminho”.
Juntando a isto as dificuldades económicas comuns a um novo negócio, o primeiro ano foi desafiante para Filomena. O negócio, porém, começou a crescer, em grande parte devido à sua premissa única, mas também pelas recomendações e os artistas que traziam mais pessoas ao estabelecimento. Destaca a Manu e a Lady Myosotis, como aquelas com quem criou uma relação de ajuda mútua, entre outros artistas de diversas áreas eróticas com quem criou uma ligação para além do lado profissional. “Quem trabalha neste mundo fechado acaba por dar as mãos e há um sentido de união”.
Para Filomena, Portugal tem de desafiar a sua perceção do mundo do erotismo, das suas vantagens monetárias e de quem trabalha nele. Considera que o país é muito retrógrado e que a associação negativa que muitos dão a quem usa o erotismo como expressão artística não reflete a abertura com que foi recebida nesta comunidade e a entreajuda que conseguiu ver nela.
Manu não só espelha este sentimento, como deseja expandir o mundo do burlesco dentro da cidade de Lisboa. No futuro, quer fazer mais eventos para impulsionar esta forma artística na cidade e no país. “Farei sempre de tudo para tornar o burlesco português ainda mais conhecido e mais abrangente”, promete.
O Artéria é um projecto de jornalismo comunitário. É feito por voluntários, supervisionados por um jornalista profissional.