O professor faz a ronda pela sala onde as alunas, de cabeça baixa, se concentram nas fichas de trabalho que se empilham nas suas secretárias. Apenas se ouve o som dos lápis novos a riscar o papel, traçando as letras das palavras começadas por “A” e repetindo o processo vezes sem conta, até lhes ficarem presas na memória muscular da mão direita. O silêncio sublinha a concentração. Enquanto os olhos analisam as páginas familiares dos exercícios dos livros da primeira classe, ocasionalmente ouve-se o soletrar abafado de um obstáculo inesperado: “um ‘a’, um ‘e’, um ‘rê’”… Helena Costa tenta ler “Astronauta”. Guia-se pela ponta do dedo, vai juntando as sílabas e acaba por pedir ajuda ao professor Lourenço, que lhe relembra o abecedário.
Todas as quartas-feiras, há uma nova lição. Sentada à secretária, na sua cadeira habitual, Maria Carmen remexe no saco de plástico que improvisa como mochila da escola. Trouxe tudo o que o professor pediu: o lápis, a borracha e um caderno de folhas pautadas que vem já escrito de tempos antigos; uma lembrança das primeiras aulas de alfabetização que frequentou. Folheia as páginas e, de vez em quando, prende-se com orgulho num parágrafo marcado com um “certo” pelo velho professor ou na caligrafia cuidada com que escrevia várias vezes o primeiro e último nome. No topo de cada folha, a data manuscrita, que remonta para o ano de 2008.
“Se tivéssemos continuado as aulas, já tínhamos aprendido a ler”, diz, em jeito de queixa, Maria Carmen. É com 88 anos que a encontramos a retomar a sua educação. Durante muito tempo, trabalhou na feira de Benfica, a apregoar a fruta e os legumes, fazendo as contas do troco na cabeça. Não aprendeu a ler, mas conhece bem os números, e diz que, enquanto lá trabalhava, nunca se enganou na soma das receitas. “Não há melhor contabilista que um vendedor ambulante”, brinca.
Maria Carmen
“Se tivéssemos continuado as aulas, já tínhamos aprendido a ler”
Não é por coincidência que as mulheres que se sentam na sala multiusos da sede da Associação de Residentes da Alta do Lumiar (ARAL), ali frequentando as suas aulas de alfabetização, já sabem escrever o nome e algumas palavras elementares. Há já 14 anos, juntavam-se na mesma disposição, de mesas viradas para os professores-voluntários. Nessa altura, uma turma com cerca de dez alunos, todos residentes da Alta de Lisboa, foi dissolvida por falta de investimento.
Quando quase não se via luz ao fundo do túnel para as estudantes que viram as aulas interrompidas, sem outra opção senão voltar às suas vidas rotineiras, tendo perdido muito do progresso conseguido aos poucos por falta de prática, José Almeida, um dos fundadores da ARAL, apresentou o atual projeto de alfabetização à Câmara Municipal de Lisboa.
Criado na Musgueira, José viu o bairro crescer, agregar vários núcleos e tornar-se uma pequena cidade, ao mesmo tempo que abrigava pessoas de todo o tipo de origens e condições socioeconómicas. Aos seus olhos, a intervenção do Estado em apoio social e o investimento em organizações para estes fins eram parcos. Um forte sentimento de dever para com a sua comunidade fê-lo, por isso, fundar a Associação de Residentes da Alta do Lumiar, com a ajuda de outros tantos interessados.
“A partir daí, fomos desenhando projetos”, explica, “sempre muito nesta lógica de que, sempre que nos apresentavam uma situação que parecia impossível, nós desconfiávamos”. Atualmente, a associação conta com uma rede de voluntários empenhados nos diferentes programas oferecidos. Desde o judo para os mais jovens, às aulas de literacia informática destinadas a idosos, o intuito passa sempre pelo auxílio da comunidade.
Se a pandemia viu um agravamento das condições de vida das camadas sociais mais fragilizadas, piorou em muito o isolamento de pessoas analfabetas que, deparando-se com informação pertinente para as suas saúde e segurança, não tinham forma de a interpretar. “É o poder estar incluído ou excluído da sociedade”, frisa José Almeida sobre a importância das aulas de alfabetização. Durante o período de confinamento, uma onda de pedidos de ajuda foi chegando à associação: “Identificámos um conjunto de cidadãos que tinham dificuldade em ler e escrever. Nestes bairros, existem muitos idosos que, por uma razão ou outra, não estudaram ou não completaram os estudos e, portanto, aquilo que sabem em termos de leitura e escrita é muito pouco”.
José Almeida
“É o poder estar incluído ou excluído da sociedade”
Só na Alta de Lisboa, entre quem passou por processo de realojamento e contactou com a ARAL no âmbito dos seus projetos, o fundador estima que pelo menos 10% da população se encontrará em níveis variantes de analfabetismo. A realidade nacional é um pouco mais sorridente, embora, em 2019, Portugal se encontrasse ainda na cauda da Europa no que se refere à alfabetização, com uma incidência mais elevada da sua ausência na população feminina. Desde os Censos apurados em 2011, que o valor rondava os 5% de adultos sem quaisquer capacidades de escrita ou leitura.
Aqui cria-se comunidade
A pequena sala da ARAL, onde se reúne todas as semanas, durante uma hora, a única turma em que o professor é mais jovem do que as próprias alunas, enche-se de gargalhadas. O ambiente é leve. Entre os rabiscos no papel e o esforço para se recordarem das letras, quem aprende vai fazendo planos para o futuro. “Senhor professor, se a gente continuar, quando houver festas, a gente vai para as festas. O senhor não se esquive!”, diz, entre risos, Helena.
As aulas de alfabetização na Alta de Lisboa não são como as demais. Desde o seu início, em 2008, que não se cingiam à teoria, estendendo-se às visitas de estudo e às trocas de prendas, chegada a época festiva. “Eu ainda tenho lá as fotografias em casa”, recorda a aluna, cuja parte favorita do programa eram os jantares de grupo. “O primeiro professor que nós tivemos apanhou cá uma piela! Ele gostava muito de nós… até chorou por nos deixar”.
Sente-se na voz a saudade daquele convívio. No hiato entre a primeira aula e o ano de 2022, perderam-se contactos, o espaço seguro onde se estreitaram laços dentro de uma turma especial, onde o intuito é aprender sem julgamento. Mas nunca se perdeu, confessam, a esperança ténue de que alguém fosse terminar o que tinha ficado a meio. “A minha amiga dona Zéza é que me disse: ‘O professor Lourenço vai dar aulas.’ Então, se vai dar aulas, eu quero ir. Podes contar comigo e com a Marta, que a gente vem”, conta Helena.
Tem 63 anos e trabalha em Alvalade numa fábrica, das nove às seis da tarde. O labor diário torna-lhe as mãos ásperas e faz com que tenha pouco tempo para mais alguma coisa. Ainda assim, chegada quarta-feira, pega na filha Marta, também adulta, com 37 anos, e vão as duas para a escola: “Só para vir para a aula, até vimos a correr. O convívio, como é bom, ainda dá mais vontade”.
Este ano letivo, a turma está cheia, tal é a vontade de aprender. Contam com oito mulheres, de idades que variam entre os 30 e os 80 anos. Na segunda aula, no entanto, a adesão é fraca, por marcar o regresso depois das férias da Páscoa. Apenas se sentam em redor de Lourenço Roque, jurista de profissão e professor voluntário na ARAL nos tempos livres, três alunas. “A Maria José não está cá hoje, mas para a semana vem”, assegura Helena.
Marta acena com a cabeça, concentrada no caderno que tem à frente. “Marta Alexandra da Costa Neves”, escreve. “Costa da minha mãe, Neves do meu pai”, acrescenta. Mas as tarefas não ficam por ali. Adianta-se com as fichas de trabalho e, quando chegar a casa, treinará as letras no caderno, para mostrar na próxima semana.
Helena, empenhada na sua própria tarefa, vai olhando de relance para o progresso de Marta e, com o orgulho típico de uma mãe, gaba-se das resmas de papéis de treino que esta tem em cima da cama. “Faz cópias de livros e tabuadas. O quarto dela parece uma escola”, observa.
Um território herdeiro dos processos de realojamento
A Alta de Lisboa é um território onde, a meio do século passado, existia um conjunto de núcleos habitacionais em forma de barracas de madeira sobre o chão em terra. Longe do centro da cidade, nos anos 50, tratava-se de uma zona rural. Quando se iniciou a construção do aeroporto de Lisboa, a partir da década de 30, a zona começou a ser ocupada por mais habitantes. Na Musgueira, as barracas foram cedidas provisoriamente pela Câmara de Lisboa, na década de 60, para realojar as famílias que habitavam na zona de construção da ponte sobre o Tejo, em Alcântara. O Programa Especial de Realojamento só começou ali em 2001. A Alta de Lisboa, atualmente, já conta com 30 mil habitantes, sendo que cerca de metade das pessoas foram realojadas, segundo um dos fundadores da ARAL, José Almeida.
O Artéria é um projecto de jornalismo comunitário. É feito por voluntários, supervisionados por um jornalista profissional.