Por estes dias, é pouco provável que se passe pelo número 60 da Rua Voz do Operário sem que o ruído noturno suscite curiosidade. Desde que abriram, em 2015, as Damas foram seguindo caminho pelas bocas da população residente e visitante, tornando-se um oásis de divertimento para quem procura alternativas aos locais clichês da capital. O letreiro luminoso não dá margem para equívocos. Há noites em que a fila para entrar se prolonga rua acima. “A nossa única estratégia foi mesmo a questão da localização”, explica Clara Metais, uma das duas “damas” que levaram o projeto avante. “Não havia nada aqui, então decidimos arriscar”.
A decisão de seguir o risco apareceu após Clara Metais conhecer Alexandra Vidal, quando ambas trabalhavam no Chapitô. Enquanto a primeira se dedicava à intervenção social, a segunda tinha a seu cargo o estabelecimento. Em comum, tinham os valores e a precariedade. “Estávamos um pouco descontentes com o rumo das coisas”, conta Alexandra.
Trocando ideias, chegaram à conclusão que a melhor forma de conseguir ter e oferecer estabilidade laboral era serem elas mesmas a criá-la. Este local, de uma antiga panificadora, foi então transformado em restaurante, bar e sala de concertos, tendo a democratização da cultura como pano de fundo. “A ideia sempre foi, desde o início, conseguir unir a parte cultural com a comida”, diz Clara Metais. “Agora, já não funcionamos assim, mas, até à pandemia, todos os nossos eventos eram de entrada livre, porque acreditávamos que era importante haver este acesso democrático à cultura e toda a gente poder beneficiar de coisas muito distintas e ser confrontada com experiências muito diferentes”, explica.
De facto, a programação cultural é diversa, abrangendo estilos musicais que vão desde o punk, ao afro, passando pela música electrónica ou o funk. Também há performances, dança ou mesmo poesia. O que não há é estéticas definidas. O que se rejeita é a homogeneização da clientela. “Nós queremos aqui dentro, literalmente, qualquer pessoa”, diz Alexandra Vidal. “Não queremos que sejam as mesmas caras todas as noites porque o bilhete custa X ou porque o posicionamento estético é Y”, sublinha.
A inclusão e a diversidade tornaram-se cartão de visita e slogan de balcão: “As Damas repudiam qualquer acto de discriminação, associado a nacionalidade, etnia, género, orientação sexual, religião, idade, classe ou deficiência”, é a frase que está pintada a caracteres de grande contraste e dimensão. Estando lá dentro, não há como não os ver. E é mesmo essa a ideia.
Estes valores funcionam como mantras de funcionamento da empresa, que acabou por ver as práticas de inclusão fazerem parte da sua singularidade. Atualmente, a equipa das Damas é composta por duas dezenas de pessoas, com diferentes origens, modos de vida e identidades. Este caminho foi seguido de forma quase “acidental”, ainda que seja reflexo do que são os valores das fundadoras. “Evoluiu naturalmente. Não houve um momento em que nós dissemos “vamos passar a fazer isto”, relata Alexandra Vidal.
Mesmo não tendo sido planeado, consegue precisar que isso aconteceu em 2019, quando, ao necessitarem de reforçar a equipa, lhes foi sugerido que contactassem o Conselho Português de Refugiados. Desde essa altura, manteve-se a ligação à entidade. “É através deles que a Abeer e o Mohi chegam até nós”, diz a responsável, que não se afirma como tal – já que nas Damas não há hierarquias, nem distinções categóricas.
‘United Nations’ da noite lisboeta
Abeer Rawayh e Mohi Aldin Hamudeh são um casal sírio que trabalha na cozinha. Vieram para Portugal para “conseguir viver em paz” e, quatro meses após a chegada, iniciaram o trabalho nas Damas. “Eu gosto muito de estar aqui”, diz Abeer, que destaca a importância que a estabilidade laboral teve no começo da sua vida em Lisboa. “São todos muito simpáticos. A equipa aqui é igual a uma família. Eu não tenho amigos, não tenho família aqui em Portugal, mas, nas Damas, todos são amigos para mim”, conta. O marido sorri e concorda com tudo. Ambos sublinham o companheirismo e destacam a ajuda que tiveram por parte dos colegas de trabalho. “Os amigos que tenho aqui e as patroas… eu não falo muito bem, mas eles ajudam-me muito”, acrescenta.
Quando começaram, em 2019, Abeer e Mohi trabalhavam na copa. Atualmente, fazem a preparação das refeições, recolhendo ensinamentos que esperam levar para poder abrir o seu próprio restaurante. “Aprenderam os dois tudo por observação, porque têm muita vontade de trabalhar e de evoluir”, afirma Alexandra Vidal.
De acordo com os relatos dos membros da equipa, a convivência é pacífica, amistosa e de grande respeito pela individualidade de cada um. Há contacto entre diferentes religiões, modos de vida, orientações sexuais e identidades de género. “A ideia não foi intencional”, diz Clara Metais, “mas, ao mesmo tempo, tornou-se bastante atraente ter um espaço em que não só temos pessoas queer, como temos pessoas muçulmanas [por exemplo] e a convivência é possível e bonita”, conta. “Há aqui um ‘United Nations’ a acontecer. Às vezes, os clientes gozam connosco mas, realmente, há aqui coisas que dificilmente [se encontram noutro lado]”, assegura Alexandra Vidal.
Yunne corrobora esta ideia. Fazendo parte da equipa da cozinha, diz que, quando se voluntariou para trabalhar, não sabia que existia esse posicionamento, mas refere ter sentido logo uma atitude positiva. “Quando vim à entrevista, já percebia essa energia e, depois de estar aqui a trabalhar, vi que era ótimo e facilmente fiz amigos e família”, relata.
“Nunca pensei que fosse ‘cair’ num sítio em que pudesse estar de crop top na cozinha, usar brincos ou, depois de sair, pudesse estar numa lingerie em palco”, diz Yunne. “Isso é ótimo e é muito raro de encontrar porque, na maior parte dos locais de trabalho, estás rodeado de pessoas que vêem tudo como anormal”, explica a jovem não binária de pronomes femininos. “Se estás fora dessa linha, dessa norma, há uma estranheza e um mau olhar. E aqui…há um futuro ideal, que seria apenas chegares num sítio e nada da tua pessoa vai ser definitivo, positivo ou negativo. Apenas és uma pessoa”, sublinha.
Frescura de ideias e sabores
A liberdade que o espaço representa tornou-se traço de carácter. Além da diversidade humana e cultural, o Damas também faz por imprimir essa característica na comida. “Os pratos variam muito, principalmente a ementa do peixe”, diz Alexandra Vidal.
Tártaro de atum, camarão ao alhinho, lulas em tempura com molho caril, secretos de porco com kim chi e mandioca ou borrego salteado com amêndoas são alguns dos pratos que estavam incluídos na ementa escrita a marcador na parede de azulejos. Por esta hora, as opções disponíveis já devem ser outras. “Eu não me consigo comprometer com uma ementa. Não consigo ir ao supermercado ou à peixaria, ver uma coisa que me agrade e [não] trazer e fazer em detrimento de algo [já definido]”, diz Alexandra. Daí que a única regra fixa seja “a frescura” do que ali é servido. “Fazemos rigorosamente tudo, todos os dias”, conta a chef.
O restaurante – como o resto – ganhou fama pelas bocas dos clientes, e, dizem as “damas”, “está cheio todos os dias”, chegando a haver reservas já para o próximo ano. O espaço foi mesmo referido na reputada revista gastronómica bon appéttit. Apesar disso, até aqui são impostas convicções. “A comida, na sua estética, não está presa a um critério social, mas nos preços está”, explica Alexandra. “O prato mais caro das Damas custa 14 euros e é sempre peixe de pesca sustentável dos Açores”, relata. Perante os preços atuais, admite ser “complicado fazer dinheiro e cumprir estes princípios”, mas, ainda assim, diz ter estado relutante em fazer o preçário refletir a inflação. “Custa-me que só certas pessoas tenham a capacidade financeira de vir [cá]”, explica a responsável.
De facto, quando abriu portas, este estabelecimento tinha preços semelhantes aos de uma associação, com pratos a custar “à volta de cinco euros”. “O restaurante nem era levado a sério”, recorda Alexandra.
Todo o mote do espaço poderia mesmo ser equiparado ao de um coletivo cultural, mas esse posicionamento nunca foi oficializado. “As Damas são uma empresa privada que funciona literalmente como uma associação cultural, sem os benefícios”, relata a mesma responsável. “É um sítio que, todo o dinheiro que faz, fica na casa”, assevera Alexandra Vidal, que diz que “nunca houve, nem nunca vai haver” distribuição de lucros. A razão está no facto de só assim ser possível melhorar as condições de trabalho ou continuar a investir na cultura, que, aliás, esteve na origem de tudo o resto.
O Artéria é um projecto de jornalismo comunitário. É feito por voluntários, supervisionados por um jornalista profissional.