Edição vídeo: Elizabeth Vieira e Miguel Lopes
Fotografia: Elizabeth Vieira
Algo tão simples como um sorriso pode ser o suficiente para juntar pessoas com diferentes biografias e perspectivas sobre a vida. E, quando se dá por isso, uma comunidade de afectos é já uma realidade bem tangível. Partindo de tal premissa, resultado mais da sua intuição do que de um qualquer manual de relações humanas, Krisna Maugi, 47 anos, começou, há três anos, a fotografar-se juntamente com clientes e amigos da loja de ferragens de Campolide, onde trabalha há uma década. E a expor na montra os retratos tirados com o seu telefone. “Isto iniciou-se como uma brincadeira e foi crescendo”, conta, divertida.
Os vidros junto à entrada do estabelecimento – Ferragens de Campolide Luís Sequeira, Lda, a funcionar no número 54 da Rua de Campolide, há cerca de 70 anos – estão já repletos de caras mais ou menos sorridentes a acompanharem o olhar optimista de Krisna. Dezenas delas. E não param de surgir novas todos os meses, ao lado de um papel que funciona como uma espécie de legenda e comentário ao inusitado mostruário. “As pessoas deste bairro fazem da minha loja um lugar cada vez mais especial”, lê-se. Nem mais. É isso mesmo. E é difícil não pasmar com tal cenário.
Agora, alguns dos que ali passam, com maior ou menor grau de confiança com a lojista, pedem para ser fotografados por ela. E com ela. Ou é Krisna que lhes propõe o registo para mais tarde recordar. Mas essa é apenas a faceta mais visível do pequeno universo de afectividade genuína e calor humano em que se converteu a loja de materiais de construção, ferramentas e inúmeras utilidades domésticas. “Para mim, ela é como uma irmã. Nem quero imaginar se esta loja fecha”, diz António Lapão, 80 anos, sentado num banco de madeira ao fundo da loja, onde passa parte considerável do dia.
Com meio-século de vida em Campolide, António entra ali todos os dias, por saber que é o local onde muita gente das redondezas se junta. “Comecei a fazer amizades. E isto ficou um ponto de encontro das pessoas do bairro”, diagnostica Krisna Maugi, que há dez anos passou a atender ali ao público, depois de a empresa do marido – fornecedora de ferragens e materiais de construção – ter assumido a gestão da loja, como forma de solucionar o avultado passivo que a anterior gerência do estabelecimento tinha acumulado para com o negócio familiar. “Deviam-nos imenso dinheiro, por isso, fizemos um acordo. E comecei a trabalhar aqui”, conta. A partir desse momento, foi-se estabelecendo uma plataforma de cumplicidades.
Mas, de início, houve resistências. “Não foi fácil, tivemos que ir ganhando a confiança das pessoas”, rememora esta natural de Moçambique, chegada a Portugal há 25 anos. A loja andava por baixo, era verdade, e a parca clientela não parecia disponível a conceder o benefício da dúvida a quem agora se apresentava por trás do balcão. “Como sou mulher e indiana, achavam que eu não percebia nada disto”, avalia, lembrando os momentos em que homens de fato de macaco lhe entravam porta adentro para saber se tinha isto e aquilo. “E daí até percebo mais do que eles”, diz, esgar maroto, em jeito de auto-avaliação. Mais: “As pessoas vêm cá só para pedir conselhos” sobre materiais e técnicas construtivas. Algo confirmado pelo amigo António Lapão, enquanto contempla o movimento, a partir do seu assento.
Basta estar alguns minutos na loja para se ver também gente a entrar apenas para dizer olá e comentar a vida do bairro, saber as novidades. Alguns deles constam do – sempre em crescimento – painel fotográfico à entrada. “Eles gostam, ficam todos contentes, sobretudo os mais velhos”, garante Krisna Maugi, que, recentemente, se viu sob a ameaça de fecho do estabelecimento, ante o desejo do senhorio em aumentar a renda. Para já, conseguiu garantir a continuidade de portas abertas por mais dois anos. “Muita gente diz ‘não feche a loja!’ e até houve quem dissesse que ia promover um abaixo-assinado para o impedir”, conta. Ao lado, António Lapão declara: “Se for preciso, empresto algum dinheiro”.