FOTOGRAFIA: LEONOR FONSECA
Como e porquê surge o c.e.m – centro em movimento?
Surge do desejo de uma não escola, no sentido de se criar uma plataforma de partilha-experimentação, tendo a Arte, sempre, como forma de conhecimento. Nada existe que não esteja já existindo, e o c.e.m não é um projeto ou um projétil, é um sonho em forma de organismo vivo que se faz presente e que tem a pertinência de aparecer, na sua complexidade, no final dos anos 1980 – a par do que se apelidou de a Nova Dança.
Comecei, com 18 anos, a criar espaços de encontro – aulas –, contudo, não era sobre ensinar uma técnica mas sim sobre ‘partilhar ventanias’, numa tentativa de trazer ‘o ir sendo ao aparecer’. Foram imensas as pessoas com quem trabalhei, que passaram, e passam, pelo c.e.m, aliás, maior parte daqueles que, atualmente, constituem o tecido artístico português. Na altura, eram poucos os que se dedicavam, realmente, à dita Formação: ou vinham de escolas internacionais e transmitiam os saberes adquiridos ou havia esta coisa de se inventar juntos, por exemplo no Espaço Experimental, que se iniciou em 1993.
O c.e.m., formalmente, como associação vigora desde 1998, mas o seu sonho existia anteriormente, a constatação de que ‘não se é corpo sozinho’ e de que estudar juntos, dançar juntos, escrever juntos – naquilo que se pode chamar de aulas, de encontros, de ajuntamentos de estudo ou de conversas –, o aprender juntos é muito diferente do se estar isolado do resto do mundo, porque há uma ressonância do ‘entrecorpos’ que é mágica.Foi neste desejo que apareceu o c.e.m. e que começou a chamar-se ‘centro em movimento’, não confundir com centro de movimento, nós não somos um centro de movimento. O movimento é infinito, logo sermos um centro em movimento, na orgânica de uma estrela, uma pulsão de existência móvel.
Explica-nos esse estado de mobilidade do c.e.m…
Quando localizamos, geograficamente, o dito centro do Corpo, entre o umbigo e a púbis percebemos que é uma coisa móvel e vibrante, sem a exatidão de um pin do GoogleMaps. O artista Tomás Maia referiu que “o c.e.m. é o olho do furacão, tem a haver com aquele silêncio no interior do movimento convulso do furacão”, esse Silêncio no interior do furacão é deveras o que o c.e.m. tem sido, sempre, mas é um Silêncio móvel, dado o c.e.m. ser vivo e nos interessar continuar a Ouvir.
O c.e.m. não se encaixa numa tendência filosófica ou estética, é sobre a ação contínua de Nascer e de Ouvir o mundo que vai sendo, no momento, e que envolve um encontro a meio caminho. Ser c.e.m. é muitas vezes desesperante, principalmente, quando tens de provar ao mundo o que estás e/ou vais fazer.
O c.e.m foi e é defensor de que a formação, a experimentação e a investigação, puras, sejam tidas em consideração nas políticas culturais portuguesas. As dinâmicas de formação, experimentação e investigação, por norma, pressupõem o ‘para’ e/ou o ‘porque’, ou seja, qual a sua aplicação, logo se não se disser o que se está a investigar e para quê, esse contributo é, provavelmente, desvalorizado. Toda e qualquer cor que se possa trazer, na especificidade da investigação por si própria, no grande nada, no grande não saber, continua a carecer de respeito e atenção. Ora vejamos, a experimentação não é colocar o pé na água fria para verificar se a água está fria. Se já se tem uma ideia de água e da sensação de temperatura, não se está a experimentar. Há, para além das coisas que integram a bagagem (de informações), algo distinto a querer conversar só que sem sucesso, pela dificuldade de atravessar as ideias-imagens feitas.
Como foi a viagem de mudança entre a Praça da Alegria e a Rua dos Fanqueiros?
A essa viagem chamou-se de “Mudormance”, foi uma mudança performativa, em que trouxemos, às costas, nas mãos, nos bolsos, em carrinhos de mão, a grande maioria das coisas que tínhamos na Praça da Alegria, pela razão de se querer ouvir, assim como as formigas, o passo a passo da caminhada, da expansão, da deslocação, da Migração – que é uma das coisas que caracteriza o Existir, embora se tenha dificuldade em perceber.
Estávamos nos Bombeiros da Praça da Alegria – mas antes disso tínhamos estado nos Bombeiros da Camilo de Castelo Branco, no Estúdio Marta Ataíde, na Infante Santo e só depois, fomos parar à Praça da Alegria –, em que o espaço dançante era enorme e tínhamos 2 andares disponíveis, porém o teto apresentava algumas fragilidades. Foi no andar de cima, na zona do centro de documentação, da produção, dos encontros de escrita – onde, por exemplo, o humorista Ricardo Araújo Pereira deu as suas primeiras aulas de escrita –, que a certa altura (em 2004) caiu o teto, como tal tivemos de procurar um novo lugar para morar, só que esse ‘à procura’ já era o ‘ir’ e assim viemos parar aqui (à rua dos Fanqueiros).
Começámos, então, a pensar que o próprio trânsito com a cidade – e aí é que está a história do Pedras –, é uma questão fundamental para o c.e.m, o estar num lugar de circulação, em que a Arte pode estar por dentro das vidas e da vida. Deram-se as mudanças, nota, sendo que as aulas continuaram a decorrer, em simultâneo com a desmontagem do estúdio, com o chão a sair, poeira por todo o lado, não parámos… e viemos com as coisas de lá até à Baixa… Quando chegámos, à noite, fez-se uma festa e no dia seguinte a nossa atividade prosseguiu. O c.e.m. nunca ter parado, não é por uma compulsão de trabalho mas sim por uma questão de ritmo, de ritmicidade, sem a necessidade de, primeiro se ter as condições ideais e só depois se existir, até porque as condições ideais não se fazem se não existirmos.
O que motivou o c.e.m. a desenvolver o projeto Pedras?
Sempre se trabalhou muito na rua, no sentido em que muitas das convocatórias para a Escrita ou para as Jam’s eram na rua. O Estar na rua já sucedia quando morávamos na Praça da Alegria. Cedo, começámos a entender que a escuta do mundo era imensa, estando na rua… até porque nunca tivemos a sensação de que um Corpo devia, primeiro, dançar numa BlackBox e só depois, devidamente pronto, abrir a porta para que os Outros o vejam, assim se justifica a realização do Espaço Experimental. O entendimento, claro, de que a Rua é em siprópria Corpo-Mundo, e que não é algo que nós ouvíamos, por se encontrar a ressonância com uma questão ou com a particularidade específica de uma questão, deu-se quando nos movemos para a Baixa, em “Mudormance”… no vir a pé com tudo às costas, as coisas pesam, tem de se parar, os carros circulam, as pessoas fazem perguntas… shit happens! Levámos muito tempo a chegar, permitindo o ‘Encontro’ acontecer, sem nunca interrompermos a Vida (da cidade), dado que existimos nesse coabitar.
O Pedras espoleta nessa viagem até à Baixa…
Pode dizer-se que sim… o Pedras chamava-se, inicialmente, Pedras d’Água – nome que surge no decorrer de improvisações, a partir de palavras, para a peça mmm [som], de 2005, em que ‘pedra’ foi aparecendo bastante, pela ideia de liquidez das pedras –, depois tirámos o ‘d’água’ por se achar demasiado explicativo… Pedras relaciona-se com Perplexidade. Quando saímos para a rua e vamos-estamos, por exemplo, no Intendente, deparamo-nos com a podridão, a prostituição, tudo abandonado, as coisas a ruírem… com os constrangimentos, mas há que permanecer a estar-escutar, porque é esse ‘estar com’ e para nada que nos revela o movimento de ser, que vem ao encontro e que possibilita, também, haver momentos de sincronicidade dos corpos no espaço, do ‘coacontecer’. É sobre a Escuta, o facto de se abrir disponibilidade de ouvir, e ouvir para lá de identificar. O ‘estar com’, escutar é, realmente, movimento, que deixa atravessar, pela membrana, aquilo que está a acontecer (na cidade) mas não se vê e ouve. Algo que o Pedras nos tem ensinado bastante.
Recordo-me de que, em 2006, os trajetos do Pedras aconteciam pela Baixa, mas ao longo dos anos a sua cartografia tem-se ampliado para outras zonas da cidade?
Sim, mas sempre a pé, a partir daqui (da Rua dos Fanqueiros), é o que fazemos, como deslocações em estrela. Como achamos pouco interessante fixar-nos num conceito ou num local, percorremos os veios da cidade, que permitem ir da casa c.e.m rumo às orlas que Lisboa convida, mesmo que, por exemplo, se atravesse de barco até à Trafaria e se volte. Além de que sentimos, e sobretudo este ano, a necessidade de se criar um foco noutro lugar e ouvir como ele irradia, pulsa, ou seja, como Lisboa fala, e não somente a partir da movimentação do centro à periferia – em estrela – , e de volta ao c.e.m.. Temos de começar a abrir o coração pois, eventualmente, a morada do c.e.m. poderá alterar-se, dado que o que nós pagamos de renda, sabemos bem ser raro, nos tempos que correm… temos a sorte de a Liane gostar que estejamos aqui… Bom, este ano estamos a ir para Alvalade, que não é propriamente o bairro típico com as cuecas à janela, é outra coisa e que decidimos escutar.
Se o c.e.m existe e se imiscui com a dinâmica do sítio, das pessoas, como é desenvolvido o trabalho com a Comunidade e de que forma vos encontra?
Como tu, a Comunidade és tu. É assim, nós não trabalhamos com a comunidade, numa lógica determinada, como o faz o Festival TODOS… A coreógrafa e programadora Madalena Victorino, esteve cá, no c.e.m., a auscultar o Pedras e constatou: “Vocês fazem um trabalho de filigrana. Eu desconfio que o meu trabalho é mais de buldózer.” – o TODOS nasceu (em 2009), posteriormente ao Pedras. Pronto, o que fazemos nada se parece com isso, nem temos sequer essa vontade, advogamos que a conversa é sobre o ‘encontro’, e aquilo que desejar aparecer no encontro, é o que for, de facto. O Corpo qualquer é aquele que vem ao encontro, evidentemente, que um Corpo nunca é abstrato ou desprovido da sua identidade – da sua história, das suas singularidades ou das suas dores – mas o Pedras não tenta chegar um bocadinho a este ou àquele tipo de Pessoas.
Ou seja, esses ‘encontros’ resultam do trabalho de filigrana que o corpo-c.e.macarinha, apenas por existir?
Para esse ‘encontro’, como há pouco te falava, se se vai realmente disponível para nada, para estar, significa que implica atravessar o grande tédio – como diz a performer Luz da Câmara –, porque 5 horas não são 5 minutos. O Estar na rua, para nada, tem uma ritmicidade própria e que não é coreografado de fora. Quando te dispões a ‘estar com’ e a escutar, o encontro teima em acontecer, costumamos dizer que não existe encontro sem deformação, de todas as partículas, e a deformação não significa para pior ou para melhor, mas é certo que não se é e fica a mesma pessoa.
Que me lembra esta passagem “tanto movimento para deixar tudo como está”, de um texto teu, nos livros-publicações que documentam o Pedras.
Sim, documentam a viagem de cada temporada do Pedras. Toda a gente que escreve em torno do Pedras, está presente nessas publicações, que agora são caixas e produzidas, manualmente, pela equipa que está a participar no Pedras desse ano. Prática, aliás, que se relaciona mais connosco, com o nosso trabalho, mas começámos por ter os livros, achava-se que era assim, em grande tiragem de exemplares, entretanto o Pedras já está longe dessa fisicalidade. Eu adoro livros, sou fã, mas as caixas são formatos-objetos mais manuseáveis e experienciáveis, pelo que contêm dentro: fotografias, folhas, textos de livros antigos, os textos novos… no fundo, os vestígios que testemunham o percurso de um ano. Cada exemplar é singular-único, logo e como na Vida, nunca se tem uma visão de tudo, é impossível.
Como se definem os nomes e assuntos, para cada publicação e edição do Festival Pedras?
Nunca sabemos qual é o nome e se vai ter nome. A primeira publicação que tem nome é o futuro foi assim, de 2014, depois veio a Arte de Caber em Toda a Parte (2015), casa connosco (2016), Manual de Estar (2017), Em que Mundo Queremos Viver? (2018), don´t feed the meaning (2020) e por aí adiante. À medida que se avança, o nome aparece. Aliás, e cada vez estamos mais selvagens, isso também se aplica à programação para o dito momento do festival: é criado um blog – que já existe para este ano –, onde se vão partilhando os escritos e as imagens, fruto do dia-a-dia nas práticas do Pedras. Mais perto da data do festival colocamos “Programação em Obras” e assim fica até ao dia de abertura, cujo desejo deste ano (2023) é iniciar a 3 de Julho e terminar a 9 de Julho. Estamos sempre, continuamente, a trabalhar, por conseguinte, quando o acaba o Pedras, continua o Pedras e só percebemos que é uma nova temporada quando ela nos afirma que é a ‘nova temporada’.
Para concluir, se o trabalho-existência do c.e.m. é sobre estar-ouvir, este dispensa objetivos?
Digamos que não é o fim do caminho que nos norteia. É evidente que à medida que se caminha, vai-se encontrando, aguçando, adentrando, afinando o desejo de Ser. Portanto, se há algum objetivo é o de Existir, e poder saborear a existência enquanto se existe. Imaginando-fazendo, quando as minhas mãos tocam o teu ombro, e ficam, enquanto conversamos, não têm objetivo nenhum senão o de ouvir, e a certa altura, quiçá, possam, no encontro, dialogar… Essa disponibilidade de escutar, das mãos, amplia as tessituras do Corpo para existir e é, exatamente, o que acontece com o Pedras (ou o c.e.m) e a escuta da Cidade, o estar com a cidade amplia os desejos de se ‘ser cidade’, pelas coisas que acontecem no ‘entre’. Com certeza, há outras formas, que não são melhores ou piores, é muito importante haver diversidade, mas o c.e.m quer continuar toda a vida a não fazer para acontecer.
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