É no número 58 das Portas de Santo Antão, em pleno coração de Lisboa, na mesma rua agitada onde pontificam o Coliseu e o Teatro Politeama, que se encontra a discreta fachada da Casa do Alentejo. Lá dentro há, contudo, um admirável mundo para descobrir.
Outrora conhecido como Palácio de Alverca, datado de final do séc XVII, este edifício já teve várias vidas, entre elas uma certa aura boémia, quando ali se instalou o primeiro casino lisboeta (Majestic Club, em 1918), mas são a cultura e alma alentejanas quem mais tem resistido às mudanças da sociedade e da própria cidade — desde o já longínquo dia 10 de Junho de 1923.
Tudo começou com a ideia de criar uma associação que reunisse a “colónia alentejana” em Lisboa, avança Manuel Verdugo, vice-presidente da instituição, que nos leva a explorar todos os cantos da Casa. Mais do que uma visita guiada é uma verdadeira viagem no tempo. Desde logo a entrada, um pátio de inspiração árabe, iluminado por uma claraboia, cujas cores das paredes lembram a terras alentejanas e os azulejos o chão remetem para aos animais que percorrem os seus campos. Um pátio que cumprimenta e promove a curiosidade.
Para muitos alentejanos a viver em Lisboa este local foi (e continua a ser) uma lembrança das suas raízes. Silvestre Preguiça, natural do concelho de Montemor-o-Novo, e sócio número 105 da Casa, revela-nos a importância que uma associação como esta tinha para quem chegava à metrópole, “um refúgio para os que deixavam a província”. Quando saiu da aldeia, na década de 70, vinha já com referências para se deslocar à “embaixada dos alentejanos”. Afirma também que aqui se faziam amizades para a vida, desde banqueiros a despachantes. Todos unidos pelas origens.
Uma das funções da Casa do Alentejo era precisamente apoiar quem chegava à cidade à procura de melhores condições de vida, tantas vezes apenas com uma mala nas mãos e o respectivo enxoval. Ou nem isso. Dentro destas quatro paredes, encontravam aconselhamento jurídico, apoio médico, ou até ajuda à alfabetização — sendo que espaços como a antiga barbaria, o consultório, um antigo estábulo ou zonas de convívio e as respectivas mobílias do século dos século XIX e XX continuam preservadas, de forma a que História continue viva.
Desengane-se, contudo, quem pensa que não havia lugar à diversão. A promoção da cultura alentejana em diversas vertentes foi sempre uma das suas forças maiores, nomeadamente através da apresentação de livros, sessões de poesia, exposições, semanas gastronómicas, mostras de artesanato e os famosos bailes. Bailaricos que são relembrados com carinho e nostalgia por Silvestre. “Ao domingo à tarde várias gerações encontravam-se para dançar. Não faltavam as moças. Umas trabalhavam nos correios, outras eram enfermeiras. Havia muitos jovens e era nos bailes que se cimentavam as amizades. Saíamos dos bailes às quatro da manhã e depois íamos comer açorda”, conclui.
O medo das portas fechadas
Durante a pandemia e, sobretudo, na sequência do confinamento que paralisou o país, o risco das portas da associação não voltarem esteve iminente — como o Público deu conta à data, a 16 de Novembro de 2020. A emoção e o medo tomava conta dos funcionários e da direção, que decidiram não baixar os braços e apostar na divulgação das dificuldades por que passavam. Chegaram, inclusive, à Assembleia da República, onde foi de forma unânime exaltado o valor da associação no panorama cultural e no património da cidade.
O apoio chegou de todas as frentes. Manuel Verdugo admite que ficaram surpreendidos. “Estes dois anos de pandemia foi algo que me marcou”, nomeadamente “as mensagens que recebemos, o apoio e os incentivos. Foi aí que vi a importância que a casa tem”. O vice-presidente acredita que o esforço que sempre demonstraram de forma a manter a essência desta associação terá sido o que alavancou esta onda solidariedade. E é sobre essa premissa que trabalham. “O fim da Casa do Alentejo ocorrerá se algum dia a magia e essência se perder”, assegura.
Todos os anos celebra-se a existência da associação, mas em 2023 as comemorações serão especiais e alargadas, não só pelas dificuldades sentidas recentemente, mas também porque será a comemoração do centenário. Haverá um vasto programa de iniciativas culturais ao longo do ano, entre elas o lançamento do livro do centenário, a inauguração de uma escultura no “Páteo Árabe”, da autoria do escultor alentejano Jorge Pé Curto e ainda várias exposições de fotografia e pintura.
E, é claro, uma sessão solene no dia 10 de junho. Um período em que se procurará reavivar a memória e ambiente das festas, dos salões, dos casamentos, do ambiente de partilha e comunhão ao vividos ao longo de um século. E também continuar a celebrar a gastronomia da região, não fossem a sua taberna e o restaurante outros dos seus cartões de visita.
Para Silvestre Preguiça e tantos outros alentejanos a viver em Lisboa, o 10 de junho “é sagrado”, a verdade é que este lugar há muito galgou as fronteiras regionais e se tornou uma morada obrigatória da cidade. Línguas diferentes invadem o pátio, à procura de uma foto ou atrás do cheiro a comida típica que se espalha pelo ar. A prova, se dúvidas houvesse, de que existe um bocadinho do Alentejo e das tão afamadas calma e alma alentejanas no meio da agitada vida da capital.
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