Teatro amador em Lisboa: pessoas movidas pela paixão

18 de Janeiro, 2023

Reportagem

Sónia Castro
Uns contam com mais de sete décadas, outros somam poucos anos de vida. São grupos de teatro feito por amadores, pessoas que, depois dos afazeres pessoais, profissionais ou escolares, se reúnem por amor a esta arte. Em Lisboa e nos arredores, são muitas as companhias de teatro amador que, com todas as glórias e dificuldades, resistem na sua paixão pelo teatro. Eis cinco desses grupos.

Fotografias: Paula Ferreira

Artec – Grupo de Teatro da Faculdade de Letras de Lisboa

Este encontro acontece numa segunda-feira à noite, no Bar Novo da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. O espaço onde, durante o dia, os alunos reconfortam o estômago, à noite transforma-se numa sala de ensaio. Para isso, arredam-se mesas e cadeiras e reúne-se quem quer fazer teatro, depois das tarefas universitárias ou profissionais. É que, apesar de ser um grupo de teatro académico, o Artec tem sempre as portas abertas para qualquer pessoa que deseje representar.

“Vamos começar? Telemóveis desligados?”, pergunta Marcantonio Del Carlo, o encenador do Artec. Os actores dão respostas afirmativas e preparam-se para começar o ensaio.

As origens do Artec remontam aos anos 90 e é o encenador de sempre que explica como tudo começou. “Eu dei um workshop aqui na faculdade, em 1994. Os alunos que fizeram essa formação convidaram-me para fazer aquele que foi o primeiro espectáculo. E foi assim que decidiram formar um grupo e me convidaram para ser o director.” De lá para cá, somam-se mais de 30 produções teatrais.

Sofia Pinto, aluna no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, está pela primeira vez no Artec. “Estou habituada a outro tipo de teatro, mais clássico e teatro musical. Aqui é diferente, com ideias mais criativas, mais fora da caixa”, diz. Também a estrear-se no grupo está André Dias, guionista de profissão. “Nós costumamos dizer que o teatro universitário é uma brincadeira levada muito a sério, pelo nível de exigência dos ensaios. E é também de uma grande exigência conjugar com a vida pessoal e profissional”, reflecte.

No final do ensaio, mesas e cadeiras voltam às posições originais. Agora é tempo de ouvir as notas do encenador: “Têm de ser mais rápidos nas mudanças. Foi muito bom o teu monólogo.” E termina com um “amanhã à mesma hora”.

Assim será. Amanhã, elenco e encenador regressam a este bar que se transforma em espaço de teatro e começam um novo ensaio do espectáculo que estreará em Abril, nesta mesma sala.

Cardume

O relógio anuncia as 21h e os elementos do grupo Cardume vão chegando, pouco a pouco. Encontramo-nos na sala multiusos de um prédio na zona do Areeiro, onde vive um dos elementos do grupo de teatro de improviso, e que tem servido de espaço de ensaios do colectivo.

Gonçalo Sítima, que assume a função de director artístico, dá início aos trabalhos: “Vamos aquecer um bocadinho.” O grupo de improvisadores principia um jogo em que cada um tem de dizer o nome de uma cidade acompanhado por um gesto. No fim da ronda, todos devem saber a sequência de todas as cidades e respectivos gestos.

Os Cardume ensaiam regularmente, mesmo quando não há espectáculos agendados. “Há muita gente que pergunta para que ensaiamos, se fazemos improviso. Mas o improviso não treina o conteúdo. O improviso treina a forma, o músculo. É como um atleta. Os atletas vão para o ginásio para poderem correr. Nós vimos para os ensaios para podermos ir para o palco”, explica o director artístico. E tem sido assim desde 2015, ano da formação do grupo.

Vera Aroeira recorda a origem dos Cardume: “Nós conhecemo-nos todos a fazer o curso dos Improváveis [companhia profissional de teatro de improviso], em várias turmas diferentes, e fomos os resistentes que ficaram com muita vontade de ensaiar.”

O grupo tem apresentado vários espectáculos em Lisboa e, em 2020, chegou mesmo a participar num festival de improviso em Amesterdão. Segundo André Carvalho, “o nosso objectivo é irmos melhorando no improviso”. E ao longo do ensaio, Gonçalo Sítima desafia nesse sentido: “Vamos ser mais exigentes. As perguntas redundantes não ajudam a cena a avançar”. Os improvisadores desenvolvem um jogo no qual os diálogos só podem incluir perguntas. A tentação de responder com uma afirmação é grande, erro que gera gargalhadas. Os risos são, aliás, uma constante.

Gonçalo admite: “As cenas que fazemos aqui no ensaio não voltam a acontecer. Cada ensaio é um espectáculo que só nós vemos e que nos diverte muito”. “Por isso é que gostamos de ensaiar”, remata Vera.

Improv FX

Nem a chuva intensa impediu o encontro dos Improv FX a uma noite de segunda-feira. No palco do Centro Cultural de Moscavide, estão oito pessoas que participam num ensaio aberto. Em que consiste um ensaio aberto? João Cruz, um dos dois elementos dos Improv FX, explica: “É um ensaio em que pode vir qualquer pessoa que queira experimentar teatro de improviso. Agora estamos numa fase em que muitos estrangeiros se juntam a nós.” E é por essa razão que no ensaio de hoje só se fala inglês.

Os jogos sucedem-se com propostas, como visitas guiadas à casa de Anne Frank ou ao castelo do Drácula. Não há limites para a imaginação e os improvisadores vão criando situações insólitas: Anne Frank tinha pósteres de peças de teatro na parede do quarto; um turista é mordido por um vampiro que, afinal, estava vacinado.

O grupo foi criado em 2017, tendo passado por vários nomes e formações. João é o elemento que se mantém desde o primeiro dia, a quem se juntou, mais tarde, André Sobral. “Na altura, éramos três e todos fãs de cinema. A nossa estética sempre foi muito à volta do cinema. Por isso, o nome tem ‘FX’, de efeitos especiais”, esclarece João.

Quanto à designação “teatro amador”, esta gera reflexão. João explica: “O teatro já foi a nossa actividade a tempo inteiro. Neste momento, temos outros trabalhos, mas continuamos a fazer isto de forma profissional. Ou seja, ganhamos à bilheteira ou, quando fazemos espectáculos que são comprados, somos remunerados. Pode-se dizer que é semi-profissional.”

Amador ou profissional, inabalável é a paixão pelo improviso. Tanta, que André esteve envolvido na organização do festival internacional de improviso Irreverente, que aconteceu em 2022, em Lisboa, e que se prevê regressar este ano: “O intuito é, não só, criar comunidade internacional, mas também juntar a comunidade portuguesa.” E nisso de juntar pessoas, os Improv FX têm estado na linha da frente.

teatroàparte

Segunda-feira, 21h. Actores e encenador vão chegando ao auditório da Biblioteca Orlando Ribeiro, em Telheiras. É tempo de beijos, abraços, gargalhadas, e há até quem ofereça chocolates aos colegas. A algazarra é grande, própria de quem tem nestes encontros um momento de evasão das exigências do dia-a-dia.

“Está tudo a postos?” O encenador Eurico Lopes dá início ao ensaio: “Vamos começar!” Sobre esta colaboração com o teatroàparte, diz: “É um grupo amador, mas muito profissional. Tomara muitos profissionais estarem com esta postura e este amor. Amador é disso mesmo, de amor ao teatro. E é um grande orgulho e um privilégio estar a trabalhar com estas pessoas.”

O teatroàparte nasceu em 1997, na Associação de Residentes de Telheiras. Adoptou vários nomes, recebeu vários encenadores e muitos mais actores, como conta Mariana Sousa, uma das actrizes: “Por norma, começamos os trabalhos em Setembro, com novo encenador, novas pessoas, e apresentamos uma peça em Maio. O grupo tem uma grande heterogeneidade, quer em número quer na idade das pessoas.”

O computador portátil é um auxiliar importante no ensaio. É através dele que o encenador acompanha o texto da peça e vai colocando a música que cria diversos ambientes. “Não ouvi”, dirige a uma das actrizes, desafiando-a a projectar a voz.

José Martins é dos que já está com o coração na estreia. “Quando chega o grande dia, pergunto-me sempre porque é que me meti nisto. Mas depois, quando acaba a primeira apresentação, há uma explosão de adrenalina e é espectacular”, assegura o actor.

The Lisbon Players

No dia em que assistimos ao ensaio, os The Lisbon Players estavam prestes a estrear uma peça. Numa sala do Teatro do Bairro, no Bairro Alto, os quatro actores estão seguros do texto e usam já alguns dos figurinos e adereços. A encenadora, Elisabeth Bochmann, dirige o ensaio com o filho ao colo, um bebé que está muito atento ao que o rodeia. O pequeno Nathaniel vai, quem sabe, seguir as pisadas da mãe e da avó, Celia Williams, na companhia.

“O grupo começou em 1947. É o mais antigo em Lisboa e o segundo mais antigo em Portugal.” Celia explica que a companhia foi criada por ingleses, mas que hoje qualquer pessoa pode participar nos espectáculos. Há apenas uma exigência: falar inglês. É que todas as peças dos The Lisbon Players são em língua inglesa.

Celia integrou o grupo nos anos 80. É actriz profissional, mas sempre que consegue conciliar com o seu trabalho, integra as actividades da companhia de teatro amador. “A palavra ‘amador’ significa que não estamos a ser pagos. Amador é a pessoa que ama”, diz, elencando outros actores profissionais que já passaram pela companhia, como Maya Booth ou Catarina Wallenstein.

A estreia da filha de Celia, Elisabeth Bochmann, nos The Lisbon Players aconteceu aos 11 anos. Com 18, rumou para Londres para se formar em teatro. Hoje concilia o trabalho de actriz profissional e professora de teatro com o grupo amador.

Mãe e filha lamentam o fecho do Estrela Hall (edifício perto do Jardim da Estrela onde a companhia esteve durante mais de 70 anos), na sequência da venda do chamado “quarteirão inglês” a um investidor privado. Actualmente, a companhia guarda todo o espólio na Associação Desportiva e Cultural da Encarnação e Olivais, mas continua sem ter sala própria para apresentar os seus espectáculos.

“Can I give the notes?” No final do ensaio, Elisabeth partilha as anotações que fez ao longo do ensaio, com pormenores que os actores têm de corrigir. No dia seguinte, domingo, há novo ensaio às 10h30.

O Artéria é um projecto de jornalismo comunitário. É feito por voluntários, supervisionados por um jornalista profissional. Saiba mais em: https://arteria.publico.pt/o-projecto/

TAMBÉM QUER PARTICIPAR?

Envie-nos um email para arteria@publico.pt, dizendo-nos que histórias quer contar ou como gostaria de contribuir para o Artéria. Terá sempre resposta.

Pin It on Pinterest