Vítor forja amizades na Alta de Lisboa com as suas lições de fado

12 de Dezembro, 2022

Reportagem

Samuel Alemão
Ao imaginarmos a Alta de Lisboa, para onde a cidade se continua a expandir e tem ganho novos arruamentos, a última coisa em que pensaríamos seria na canção tradicional de Lisboa. Mas a vontade de um músico amador, e antigo condutor de pesados, fez com que ali surgisse uma escola de fado. Vítor Tiago acha que esta pode ser uma boa forma de dar vida aquela zona e ajudar a cimentar os laços comunitários. As tradições, afinal, têm de começar de algum lado. E o bairrismo não tem de se cingir à “cidade histórica”.

Uma pergunta pode ser quanto baste para abrir portas inesperadas. “Por que é que não te dedicas ao fado?”, pode ser uma delas. E foi isso que Vítor Tiago ouviu, há 37 anos, quando alguém o desafiou a enveredar por um caminho artístico e também profissional em relação ao qual, admite hoje, até nutria um particular preconceito. Isto apesar de, na altura, a canção tradicional lisboeta não lhe ser uma forma de expressão assim tão estranha. Muito pelo contrário, ouvi-a em casa. Afinal, a pergunta lançada naquele momento, em pleno Bairro Alto, ao homem que agora está prestes a fazer 70 anos, tinha uma ligeira cambiante – que já revelaremos, mais adiante.

A questão que lhe lançaram uma noite, em 1985, podia agora bem servir de mote ao seu recém-lançado projecto, o Espaço de Fado da Alta de Lisboa (EFAL), a funcionar num rés-do-chão de um centro comunitário que lhe foi cedido pela associação de residentes, pelo menos durante um ano. A empreitada tem muito de inusitado, dada a junção numa mesma frase das expressões fado e Alta de Lisboa. A velha e a nova cidade em conluio. Vítor, mestre da viola e cantor, é o primeiro a admiti-lo. Mas ele sabe que as tradições também se forjam, precisando apenas de tempo e dedicação para singrarem. Ainda são apenas nove alunos, neste momento, mas a esperança é que o passa-palavra cresça e apareçam mais interessados.

“O fado evoluiu muito, em termos musicais, misturou-se com outras coisas, abriu-se”, admite o patrono da novel academia fadista, que, na verdade, prefere que não lhe chamem de professor. “Corrector” é a expressão por si sugerida. Corrector? “Sim, é porque as pessoas praticam, seja viola ou canto, e eu digo o que acho que não está bem ou pode melhorar”, justifica este antigo motorista de pesados, reformado há pouco mais de dois anos. Uma actividade iniciada em 1977 e que foi mantendo em paralelo com a de guitarrista “Pus sempre o meu trabalho à frente do fado. O meu pai dizia sempre ‘nunca abandones o que fazes pelo fado’. E ele tinha razão, era uma pessoa única, com uma visão muito estruturada das coisas”, recorda Vítor Tiago, evocando o fadista Telmo Simões, falecido em 2008.

Vítor Tiago junto à sua “academia de fado”, já frequentada por nove alunos.

Foi a ele e à sua carreira – revela-se agora – que se referia quem lhe fez a tal pergunta, numa já longínqua noite de 1985, no então genuinamente castiço Bairro Alto. “Por que é que não te dedicas ao fado, como o teu pai?”, interrogava-o, naquela altura, na mítica tasca da Tia Sabina, o pai do que viria a ser o hoje consensualíssimo Camané. Por aqueles tempos, Vítor, que tinha 33 anos, andava pelas casas de fado, mas não só, a fazer tempo antes de actuar em estabelecimentos onde se ouviam outras sonoridades. Era guitarrista de um conjunto que tanto tocava boleros como o que, à falta de melhor categorização, poderia ser descrito como música popular portuguesa. Integrava o Trio Mondego, para o qual havia sido contratado dois anos antes.

As correntes musicais por onde então se movimentava nada tinham que ver com fado, apesar da carreira do pai e também da de um tio, que era guitarrista. Natural do bairro do Alto do Pina, Vítor sabia bem o que a casa gastava. Pois tinha quem o cantasse entre paredes. E o progenitor não o incentivava a seguir-lhe as pisadas. “Eu não gostava de fado. Aquela sonoridade e aqueles ambientes não me diziam muito”, assume Vítor. “Era uma grande chatice na família. O fado tinha má fama. Via-o como uma coisa de bêbados. E, na verdade, sempre que passava numa taberna, havia malta a cantar o fado”, recorda.

O que mais atraía o jovem ouvido de Vítor Tiago eram os baladeiros da época, a começar por Bod Dylan. Ia apreciando com mais ou menos atenção todos os que arrancassem das cordas de uma viola melodias que lhe agradassem, acompanhadas pelo calor de uma voz. Autodidata por necessidade, foi aperfeiçoando a técnica, da viola e da voz. O Trio Mondego surgiu com naturalidade. E depois veio a tal interpelação do pai do Camané. E tudo mudou. Tal sortilégio leva-o agora a dedicar-se ao ensino do fado – juntamente com os guitarristas João Serra e Moura e Bernardo Pereira –, por meros cinco euros por aula. Um valor simbólico, mas ainda assim a justificar-se, “para não vir muita gente de fora”. O bairrismo tem destas coisas.

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