Crónica

Paulo Ferrero

Comemorar Ribeiro Telles em Lisboa (todos os dias)

14 de Outubro, 2022

Não é muito comum, no nosso país, alguém ter sido ministro e acabar por se converter numa figura consensual. Mas foi isso que sucedeu a Gonçallo Ribeiro Telles, que nos deixou há quase dois anos. Todos lhe reconhecem um papel central na arquitectura paisagista e na defesa do ambiente em Portugal. No ano em que se assinala o centenário do seu nascimento, a marca por ele deixada na cidade de Lisboa é agora evocada por Paulo Ferrero, da associação Fórum Cidadania LX. E são muitos os bons exemplos para onde olhar. Sempre em tons de verde.

No presente ano da graça do Senhor, comemora-se o centenário de Gonçalo Ribeiro Telles (25.05.1922-11.11.2020), a quem apelidaram, recente e muito justamente, “jardineiro de Deus”, porque, de facto, ele é uma daquelas personalidades que num país como Portugal, mais a mais na sua área do conhecimento, surgem de cem em cem anos, senão mais.


Em memória, agradecimento e reconhecimento, suponho, a este homem claramente à frente do seu tempo, a Assembleia da República, honra lhe seja feita, aprovou que o dia 25 de Maio passasse a ser designado Dia Nacional dos Jardins. Aplauso.


Contudo, a verdade é que no nosso dia-a-dia de microcosmos se continua a invocar em vão o nome do homem que nos deixou tão bela obra e tão sábios conselhos – alguém que, claramente, deveria ter sido Presidente da CML e Ministro do Ambiente, cumulativamente, durante …50 anos (?).


Porque, se uma larga maioria dos portugueses fez e faz bom uso do seu legado e da sua doutrina, houve e há sempre quem, com responsabilidade ou cargo, não poucas vezes recorrendo a pareceres de eminentes colegas de profissão (!), promova e licencie precisamente o contrário do que Ribeiro Telles (RT) defendeu. Fizeram-no em vida do próprio e continuarão a fazê-lo agora.


Basta determo-nos nos variadíssimos projectos que foram aprovados ao longo dos últimos 40 anos, pelas edilidades de norte a sul de Portugal, ou pela própria administração central. Projectos que atentaram, muitas vezes de forma irreversível, à nossa orla costeira, à paisagem, aos parques e reservas naturais (a começar pelas que o próprio haveria de conseguir que passassem a lei em 1980, as célebres RAN e REN), à circulação dos lençóis freáticos, ao sistema de vistas, à preservação das espécies, à permeabilidade dos solos, ao ordenamento do território, ao arvoredo autóctone, ao património histórico, aos misteres e tradições, etc., numa palavra, ao campo e…à cidade.

Jardins da Fundação Calouste Gulbenkian são obra maior do arquitecto paisagista.


E foi precisamente à nossa capital, à Lisboa dos bairros e dos alfacinhas, que tão bem serve de mote ao “Projecto Artéria”, que RT mais tentou ajudar a que fosse mais humana e amiga do ambiente, ou seja, da vida, do que era quando a começou a olhar com olhos de ver.


E se muito do que ele planeou e executou pela cidade ainda existe, outro tanto ficou por fazer, pelas mais variadas razões, quando não por razões que a razão desconhece. E pelas mesmas outro ainda ficaria incompleto ou tornar-se-ia impossível de concretizar com o passar dos anos. Basta pensarmos na célebre “pedonalização” da Avenida da Liberdade – a sua avenida -, projecto que ficou por concretizar, dado ter sido apresentando em plenos anos 60, anos de ditadura do automóvel. Ou nas construções e vias rápidas que tornaram intermitentes os imensos contínuos verdes dos sonhados Parque Periférico – coroando a cidade pela Ameixoeira – e corredor verde de e para Monsanto, por mais pontes pedonais com que agora o tentem disfarçar, Vale de Alcântara incluído.


Do que foi efectivamente feito e resiste, é de facto notável como o nome de RT e a indelebilidade do seu cunho aparecem ligados ao que mais importante se conseguiu na cidade durante os últimos 60 anos.


Do seu contributo para a criação e reforço das grandes manchas verdes de Lisboa, que dão melhor ar aos lisboetas, mas também à escala do canteiro de jardim, da árvore escolhida para alinhar e alindar arruamentos (veja-se, por exemplo, a beleza que espalhou no empreendimento da EPUL no Alto do Restelo); da sebe, do murete e da pedra rústica no logradouro mais ou menos escondido (por exemplo, RT é indissociável do desenho de espaço público no Bairro de São Miguel, no Bairro das Estacas, nos impasses do Bairro de Alvalade, nos logradouros públicos ao longo da Av. E.U.A.), com que confortamos o olhar e o nosso lazer, aplicando na cidade a “cidade dos 15 minutos”, tão apregoada que foi nos últimos tempos, mas que há 70 anos já por cá andava, quando se concebeu a primeira célula do Plano de Alvalade, vulgo Bairro das Caixas.


É verdade, sim, RT está presente em toda a cidade, de uma ponta à outra, literalmente, senão vejamos: É da sua autoria (1955) o singelo e lindo espaço verde em redor da capela manuelina de São Jerónimo, ao cimo da Avenida da Torre de Belém, desenhado no âmbito do Plano de Urbanização da Encosta do Restelo; assim como foi ele quem polvilhou de verde os Olivais-Norte e é do seu punho o jardim do Cabeço das Rolas, o novel patamar-miradouro verde, desenhado ao tempo da Expo’98, que remata a Sul o actual Parque das Nações, em terrenos antes poluídos, e agora ameaçado pela fúria construtora em vigor por aquelas bandas.


É por isso importante aproveitar-se a efeméride para comemorar a Lisboa de RT. E com isso contribuir para impedir a destruição ou mutilação daquilo que nos deixou, e assegurar que é impossível de acontecer um retrocesso civilizacional em termos do ordenamento da cidade, de consequências nefastas para todos – é por isso preciso que se acabe, definitivamente, com as construções em cave nas colinas e encostas e em leito de cheias, cumprindo escrupulosamente o PDM (Plano Director Municipal), bem como é imperioso acabar com o abate sistemático das árvores de grande porte, que não só nos dão oxigénio para sobrevivermos como embelezam muita Lisboa, que sem elas é feia.


E comemorar RT é, desde logo, viver esses espaços, estimá-los e preservá-los. Dá-los a conhecer a quem não os conhece. Falar deles e por eles. Dos espaços que ele nos deixou, porque de sua autoria, e dos que, já pré-existentes, ele ajudou a que se tornassem no que são hoje. Vivê-los com calma e a pé. Sem poluição do ar ou visual e sem ruído.


É preciso que as pessoas continuem a respirar a Natureza, a sentir os Elementos, a conviver com a Fauna e a Flora que connosco partilham este mundo. É preciso também que continuemos a saber diferenciar o urbano do rural, e a não abdicar de zonas da cidade onde ainda existe o bucólico – exemplos como o do Paço do Lumiar e certas zonas de Carnide.

“Comemorar Ribeiro Telles é, desde logo, viver esses espaços, estimá-los e preservá-los”.


Evoque-se RT pelo monumento que são os jardins da Gulbenkian, pelo Jardim Amália (1996) ao alto do Parque Eduardo VII, Mata de Alvalade (1951), pelos infindáveis pequenos jardins e mini-corredores verdes entre prédios e quarteirões de Alvalade; mas também pelas bem-vindas hortas urbanas (em talhões ordenados) que, com muitas décadas de atraso, conseguiu que a CML as concretizasse em locais como os Olivais, Campolide e Benfica. Além de que uma “Artéria” virada para o cidadão não pode esquecer o pequeno-grande, enorme, cidadão que foi RT, incansável defensor do património da cidade, da sua história e das suas comunidades.


Também inesquecível foi o seu protesto veemente contra a destruição criminosa (anos 90) do então fabuloso jardim do Palácio Sotto-Mayor, na Av. Fontes Pereira de Melo, a que a CML não deu ouvidos. Muito pior, anos mais tarde, em 2002, um outro executivo camarário teve mesmo o desplante de despejar RT e o seu gabinete técnico, porque se tinha tornado incómodo.


Inesquecíveis eram ainda as histórias que RT gostava de contar, acerca dos mais diferentes assuntos, e sempre com muita jovialidade, conhecimento de causa e um enorme e desarmante sentido de humor.


Histórias de uma Lisboa que acabava no Marquês, histórias da saga antiga do transporte de mercadorias do Lavre para Lisboa, passando por conversas sobre palácios, muros de xisto, oliveiras e sobreiros, azulejos antigos, conventos e irmandades (RT era o Juiz-Presidente da Irmandade de Ofícios da Antiga Casa dos 24, São José dos Carpinteiros, em Lisboa), Montemor-o-Novo e tudo o mais que gostava de conversar. Há que comemorar RT todos os dias, para que a semente germine.

O Artéria é um projecto de jornalismo comunitário. É feito por voluntários, supervisionados por um jornalista profissional.

Pin It on Pinterest