Pode-se sempre argumentar que não há como escapar a certos lugares comuns. Seja no que for. Até na forma como se desfruta dos tempos livres na cidade. Mas, bem vistas as coisas e se nos esfoçarmos um pouco, consegue-se sempre encontrar uma perspectiva diferente. No caso de Lisboa, a forma mais fácil de o conseguir pode, precisamente, ser o tentar encontrar coisas para ver e fazer, durante o Verão, fora do centro histórico e do que é prescrito pela generalidade dos circuitos turísticos estabelecidos. Isto apesar de muitas das coisas que poderiam ser vistas se manterem, inexplicavelmente, de portas fechadas.
Muito foi dito e sugerido, mas passou sobretudo por aí a conversa “Olhares e evocações sobre o verão em Lisboa”, promovida pelo Artéria e ocorrida, na tarde desta quarta-feira, no auditório do PÚBLICO, em Alcântara. Conduzida por David Pontes, director-adjunto do jornal, contou com a participação de três profundos conhecedores da cidade: Anísio Franco, historiador da arte e autor do livro “Caminhar em Lisboa / 7 percursos pelas histórias e segredos da cidade”; Paulo Ferrero, membro do Fórum CidadaniaLX, reconhecido sabedor do património da capital e das suas histórias; e ainda Luís Maio, antigo jornalista de cultura e de viagens do PÚBLICO, e organizador de roteiros alternativos em Lisboa e noutros locais.
“Acho que as pessoas devem mesmo sair de Lisboa, durante esta altura do ano, porque metade das pessoas não estão cá e, se nós queremos tratar de algum assunto, não conseguimos. Por isso, o que eu sugiro é que se abandone a parte central da cidade”, apelou Anísio Franco, de forma bem humorada, logo a abrir a conversa. “Se ficarmos aqui, nesta altura, e formos para os locais do costume, como Praça do Comércio ou Rossio, não vamos encontrar nada de jeito”, atirou o historiador e subdirector do Museu Nacional de Arte Antiga, fazendo eco de um sentimento aparentemente generalizado entre uma parte substancial da população de Lisboa e que tem acompanhado o crescimento exponencial da actividade turística na cidade. Um fenómeno que os convidados pareceram concordar ter-se agudizado nos derradeiros cinco anos.
Luís Maio salientou as alterações profundas na demografia e na vivência da capital, ocorridas nos tempos mais recentes, para enfatizar a forma aparentemente díspar como os residentes e os turistas a percepcionam. “Na verdade, muitos dos bairros com reputação de autênticos já não o são. Alfama praticamente já não tem portugueses, a não ser um ou outro que trabalhe no turismo”, asseverou, dando ainda a entender que tal mutação tende a alastrar-se a outras zonas da cidade mais afastadas do centro histórico, como Campo de Ourique, onde o crescimento da população francesa tem sido assinalável.
E o êxodo para a periferia dos, até há pouco, considerados autóctones só tem acentuado tal entendimento. “Em certos circuitos históricos, há muito mais gente que noutros lugares da cidade. As pessoas, sente-se cada vez mais, ou já não trabalham em Lisboa ou não vêm a Lisboa”, afirmou o antigo jornalista do PÚBLICO, apesar de reconhecer que “a cidade tem muitas cidades lá dentro”, reflectindo diferentes dinâmicas sociais, económicas e culturais. Mas também etárias, no seu entender. “O problema é o desinteresse cada vez maior pela cidade por parte das novas gerações”, disse. Paulo Ferrero notou que “cada vez há menos vida de bairro, porque os bairros deixaram de ter uma série de equipamentos”.
Assumindo-se, “em parte”, como representante de uma cultura em muito devedora dos paradigmas culturais do século XIX e, em particular, do “flâneur” – ou seja, o indivíduo que se deixa perder pela cidade e, consequentemente, pelos pensamentos que lhe vão ocorrendo nessa jornada -, Luís Maio identifica, porém, o surgir de outra formas de viver o espaço urbano, mais próximas de um pulsar contemporâneo. “Hoje em dia, as pessoas não têm esse prazer que a nossa geração tinha de caminhar sem destino. Se descermos do comboio no Cais do Sodré, reparamos que as pessoas que ali chegam vão, sobretudo, para correr ou para ir para a outra margem. E também já há estrangeiros a fazer o mesmo”, afirmou.
Por tudo isso, talvez o melhor mesmo seja ir buscar indícios de genuinidade e de diferença noutras paragens. Para aquelas onde as miras fotográficas não estão, por regra, apontadas. “Há outras Lisboas, há outros caminhos para fazer, zonas mais criativas, onde está gente mais nova e com mais energia. Há periferias novas que não conhecemos e têm uma energia diferente da de uma Lisboa mais convencional”, assegura Anísio Franco, exemplificando com a zona do Beato, “que está a explodir com novas indústrias criativas”. Mais longe que isso, Anísio aponta a saltadas para bairros ainda mais distantes do centro, como Ajuda (“um bairro excelente”) ou Lumiar, onde a zona antiga e o Palácio do Monteiro Mor são atractivos ainda não tão valorizados como deviam, entende.
Dando ênfase ao muito que se pode ganhar com a descoberta acidental, Luís Maio lembrou o prazer “anacrónico” de apanhar autocarros ao acaso e deixar-se ir para um destino não programado. Foi assim que ainda não há muito tempo se viu em Marvila. Apelando também à subjectividade, e quando desafiado a sugerir um périplo de teor mais hedonista, Paulo Ferrero aludiu a um “percurso do bitoque”, ao qual se têm dedicado alguns gastrónomos amadores, deambulando pela cidade em busca dos melhores exemplos de tal prato, como paragens por áreas como Campo de Ourique e Avenidas Novas.
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