A diferença que eles fazem.
O aviso vem pronto. “Sou a antítese do que se espera de uma mulher da minha idade, neste bairro”. Sem perder tempo, e mal se senta à mesa com o Artéria, numa das salas da sede da Associação AB2M – Amigos do Bairro Alto da Ajuda, no rés-do-chão de um modesto prédio habitacional, Sandra Alves faz um de ponto de ordem. A presidente da instituição que mais tem lutado para dignificar a vida no Bairro 2 de Maio não é mulher de se deixar acomodar. Nem no que a ela ou à sua família diz respeito, nem à comunidade que a viu crescer. Mas tal não lhe tira a clarividência de intuir noutros a surpresa pela singularidade do percurso no contexto de um aglomerado populacional marcado pelo estigma social.
Gestora de recursos humanos e financeiros numa sociedade de advogados, percebe-se que, do alto dos seus 47 anos, denota orgulho em não se ter deixado aprisionar por qualquer determinismo social. Mesmo que os primeiros anos da sua vida se assemelhassem a um guião tantas vezes por ali encenado. Iniciou aos 15 anos a união de facto com o companheiro de quem viria a ter dois filhos, o primeiro dos quais aos 17. E não o fez devido às “lutas internas” que a desassossegaram desde cedo. “Nunca deixei de estudar. A minha motivação sempre foi aprender. Leio, pesquiso aquilo que não sei, tentei sempre evoluir”, conta, numa espécie de enunciado a justificar que tenha feito “parte do primeiro grupo do programa Novas Oportunidades a concluir o 12.º ano de escolaridade”. Depois, veio a licenciatura em gestão, através da Universidade Aberta.
Esse impulso de transformação individual nunca o deixou também de querer aplicar ao Bairro 2 de Maio, onde chegou em Fevereiro de 1975, com alguns meses de vida, após os pais para ali se terem mudado – no auge dos fulgores do PREC (Processo Revolucionário em Curso) -, vindos da zona da Graça. Alguém tinha de fazer alguma coisa, pois os poderes públicos, durante décadas, conviveram bem com o opróbrio a que a zona parecia estar sentenciada. “Este bairro sempre esteve abandonado à sua sorte. Ninguém queria saber disto”, diz. A generalizada falta de qualidade urbana e a carência de infraestruturas andavam de par em par com o novelo de carências sociais, económicas, culturais, bem como de insegurança e de má fama da área.
Em 2013, numa altura em que pouca coisa era feita pelo 2 de Maio – “havia um vazio” -, exceptuando o embrionário trabalho comunitário dos estudantes da vizinha Faculdade de Arquitectura – determinante no ímpeto regenerativo do bairro e que resultaria na fundação da associação Locals Approach -, Sandra decide envolver-se no processo de mudança. Começou a participar, “como cidadã interessada”, nas actividades do programa municipal BIP/ZIP (Bairros e Zonas de Intervenção Prioritária). “Queria manter o low profile”, assegura. Até que houve um momento, em 2016, em que tudo mudou. E ela passou a assumir um maior protagonismo, apoiando o trabalho, que já vinha sendo feito informalmente pela educadora Carina Faria, de acompanhamento às crianças do bairro.
Estava numa reunião de trabalho com um cliente e não conseguiu esconder um peso na alma. Sabia que, por falta de dinheiro, duas dezenas de crianças do bairro não poderiam ir à praia, como era hábito no âmbito de um ATL de férias. “Desabei e comecei a chorar”, recorda. O cliente, ao saber da situação, ofereceu os 800 euros necessários. Mas, na verdade, o cenário era bem pior. Deram-se então conta que haviam ali miúdos que nunca tinham ido ao Terreiro do Paço ou para quem ir a Belém, mesmo ali em baixo, era algo extraordinário. “O mais inacreditável é que isso acontecia, há 30 anos, comigo e as minhas amigas, numa altura em que já não devia acontecer. Naquele momento, disse ‘Não posso aceitar. Isto não pode voltar a acontecer’”, diz. Poucos meses depois, em Abril de 2017, nascia a associação a que preside – fundada juntamente com Carina Faria, 37 anos, e Adriana Alves (30), a sua filha, que têm desempenhado um papel fulcral.
Hoje, a Associação AB2M – Amigos do Bairro Alto da Ajuda tem um trabalho amplamente reconhecido pela comunidade e envolve mais de meia-centena de pessoas, centrando-se em actividades para crianças e jovens, mas também para adultos, sobretudo séniores – actualmente, são uma dezena. Mas os mais pequenos são mesmo a sua razão de ser. Apoio escolar, desporto, expressão artística e corporal, bem como coisas tão elementares quanto ensinar a respeitar os outros e os espaços e equipamentos coletivos fazem parte do programa. Tudo financiado por apoios públicos eventuais e donativos. O objectivo é claro. Que a zona seja mais uma área de Lisboa, como tantas outras. Sem estigmas. “Quero muito que o Bairro 2 de Maio seja como o Bairro Azul”.